3.0.3 08/04/2024
Como uma frouxa lamparina no meio das trevas
“Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.”
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), foi lançado como romance em 1881, introduzindo inovações na literatura brasileira do século XIX. O Rio de Janeiro passou por um período de modernização após a chegada da Família Real em 1808 e a independência do país em 1822. Com uma população crescente, a cidade tornou-se um centro de comerciantes, burocratas, funcionários públicos e vários outros grupos sociais, todos encontrando seu lugar no mundo criado por Machado de Assis.
O nascimento da literatura realista está ligado a uma série de discussões que abrangem cultura, ciência, política, sociedade e economia. Esse gênero se caracteriza por suas narrativas complexas, que mergulham no imo da psique humana, contextualizando e problematizando o mundo vivenciado por seus personagens. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, vemos o Brasil emergente do século XIX, uma nação em transição de uma era colonial, cuja hierarquia social é estruturada em torno de três classes: os proprietários de terras, os escravizados e um grupo intermediário composto por indivíduos livres e burocratas.
Na obra, Brás Cubas surge como personagem distinto, um herdeiro que nunca sentiu a necessidade de trabalhar para se sustentar e, em muitos aspectos, um precursor da mentalidade niilista predominante no Brasil. Machado de Assis faz algo sublime na obra: transforma o sujeito de sua crítica em um personagem cativante, sem remorso em suas falhas e cheio de ironia e irreverência. O leitor torna-se um confidente de Brás Cubas (defunto autor), que nada esconde, pois acredita que as coisas foram como realmente foram. Em meio a uma existência aparentemente sem propósito, Cubas encontra consolo no fato de não ter repassado a ninguém o fardo da nossa miséria.
Ao contar a história de sua vida a partir da perspectiva de um defunto, Brás Cubas transcende as limitações da existência terrena, colocando-se fora do alcance das críticas e dos julgamentos dos vivos. Ao revisitar o seu passado, assume o papel de narrador-observador, o que lhe dá liberdade para navegar em sua própria narrativa sem ser restringido por regras ou formalidades. À medida que a trama se desenrola, a estrutura narrativa assume diversos aspectos, inclusive capítulos em branco, mostrando a irreverência característica do romance moderno. A digressão é o traço que define o estilo de Machado de Assis. O fluxo de sua narrativa é interrompido por observações metalinguísticas, referências intertextuais, narrativas paralelas e, acima de tudo, exames filosóficos do sujeito e da sociedade. Como resultado, os enredos de suas obras são fragmentados e desorientadores. No entanto, essa complexidade é contrabalançada pela inteligência e pela estrutura vibrante e contemporânea das suas criações literárias.
O tempo do romance é fragmentado, contemplando a vida do narrador de 1805 a 1869. Nesse sentido, o livro explora dois períodos distintos: o cronológico, que enfoca os acontecimentos da vida de Brás Cubas, e o psicológico, que investiga as lembranças e as reflexões do autor. Nos capítulos iniciais, conhecemos o motivo da morte de Brás Cubas, os acontecimentos que a desencadearam, as pessoas que estiveram presentes nos instantes finais, a história familiar do protagonista e os delírios que vivenciou. Contrariando a crença popular, o protagonista não é um herói. Na verdade, a sua família tentou mascarar a sua origem humilde com uma história de realizações impressionantes. A sua linhagem remonta a Damião Cubas, tanoeiro e agricultor, que não se envolveu em nenhuma guerra heroica contra os mouros, apesar do relato embelezado da história por parte de seu avô Luís Cubas.
“Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”
Tendo desfrutado de uma infância sem limites, acompanhamos as influências sociais que contribuíram para a formação de Brás Cubas. Livre de quaisquer inibições, Cubas ganhou o apelido de “menino diabo” quando criança. Oriundo de família rica, que tinha escravizados e vastas extensões de terra, foi criado em um ambiente onde a indulgência não tinha limites. Crescendo no contexto histórico e cultural de uma sociedade colonial dependente do trabalho de escravizados, Cubas mimetizou os comportamentos agressivos que testemunhou.
Nos tempos de escola, Brás Cubas guardou lembranças de Quincas Borba, companheiro encantador. Entre seus familiares, destacaram-se os seus tios, o cônego Ildefonso e o bacharel João. Enquanto o primeiro imaginava um futuro religioso para o rapaz, o segundo previa uma vida de prosperidade. Foi tio João quem acompanhou Brás Cubas a um jantar na casa de Marcela quando ele tinha apenas dezesseis anos. Marcela foi o seu primeiro grande amor. Com ela, Cubas descobriu que o amor e o dinheiro andam lado a lado e que o caminho para o coração de uma mulher muitas vezes passa por uma joalheria. O caso chegou ao fim quando o pai de Brás Cubas enviou o filho para estudar na Europa.
A desilusão e a ideia de acabar com a própria vida acompanham Brás Cubas em sua partida para a Europa. A sua passagem pela Universidade de Coimbra revelou-se medíocre, sendo os estudos uma mera reflexão tardia. Em vez disso, mergulha em uma vida de superficialidades e aventuras românticas. Contra todas as probabilidades, consegue obter o seu diploma. Ao retornar ao Brasil após anos em Portugal, chega a tempo de se despedir de sua mãe, que falece logo em seguida. É nessa época que conhece Virgília, uma jovem de dezesseis anos e filha do Conselheiro Dutra, destacado político. O pai de Cubas sugere que ele considere um noivado com Virgília, pois a união melhoraria muito as suas perspectivas políticas na Câmara dos Deputados. Tudo caminhava bem até a chegada de Lobo Neves.
Em perspectiva comparativa, Virgília pesou as qualidades da águia com as do pavão e escolheu a águia, “deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera”. Torna-se evidente que o pavão não é outro senão o próprio Brás Cubas. Embora o relacionamento deles não tenha culminado em casamento, continuam se envolvendo amorosamente. Durante a sua jornada, Cubas reencontra Quincas Borba, amigo de infância que passou por momentos difíceis e que agora vive pelas ruas como mendigo. Apesar da pobreza do amigo ter causado medo e compaixão no protagonista – o que o levou a oferecer ajuda –, fica claro que Quincas Borba estava apenas interessado em obter lucro, o que o levou a furtar o relógio de Brás Cubas.
Mesmo casada, Virgília mantém um caso de amor com Brás Cubas, até que Lobo Neves é nomeado presidente de uma província. Nesse tempo, notícias sobre o caso extraconjugal começam a circular publicamente, e a irmã de Cubas, na tentativa de evitar um escândalo, se encarrega de encontrar uma esposa para o irmão. Uma carta anônima é enviada a Lobo Neves acusando Virgília de adultério, que nega as acusações. Lobo Neves assume o cargo de presidente da província, encerrando de vez o caso de Virgília e Brás Cubas.
Sozinho, Brás Cubas decide se casar com Eulália, mas ela acaba morrendo de febre amarela. Ele embarca na carreira política e reencontra Virgília. Lobo Neves chega perto de alcançar o cargo de ministro, mas morre poucos dias antes da sua nomeação. O estado mental de Quincas Borba começa a deteriorar-se, enquanto Cubas assume uma função na Ordem Terceira por um período de três anos. Durante esse tempo, testemunha o fim de seu primeiro amor em um hospital de caridade. Quincas Borba, oprimido pela instabilidade financeira, enlouquece.
“O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único!”
Desde criança até a morte, Brás Cubas viveu para idealizar novos empreendimentos. Hipocondríaco, nutriu planos para desenvolver um remédio que aliviasse a melancolia da humanidade. Seria equivocado, no entanto, presumir que esse seria um ato de redenção, pois ele também considerou os benefícios econômicos que a sua criação lhe traria. Mesmo hoje, encontramos indivíduos semelhantes a ele, guiados pelo interesse e pela busca de fama, com pouca empatia pelo sofrimento dos outros. Apesar de todos os esforços, o emplastro se tornou mais um acréscimo à sua coleção de fracassos. Solitário, Brás Cubas morreu de pneumonia em 1869, aos 64 anos, no bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro. Apenas onze pessoas compareceram ao seu enterro.
Em síntese: Brás Cubas foi um homem que, com o temperamento de uma criança indulgente, se envolveu em paixões passageiras e se aventurou em diversas ocupações, perdendo rapidamente o interesse nelas. Teve ideias que nunca se concretizariam, pois pensava apenas nas recompensas que poderia ter ao atingir o objetivo. Sem autorreflexão e cético em relação aos esforços necessários para estabelecer uma carreira de sucesso e relacionamentos estáveis, viveu à sombra de seus privilégios, tendo apenas uma casa confortável, acesso à cultura e à alta sociedade. Nas raras ocasiões em que teve a oportunidade de fazer a diferença, como ajudar alguém necessitado, a sua mesquinhez prevaleceu e fez o mínimo. Egoisticamente, acreditava que merecia mais do que dava. Exagerou a importância dos seus pequenos gestos, usando-os como um estímulo para o seu ego e um bálsamo para a sua consciência, mesmo que apenas para momentos fugazes de autoavaliação.
A sensação de vazio existencial vive em cada página, tornando-se a característica mais proeminente da obra. Machado de Assis explora a importância de encontrar um propósito na vida. Sem ações significativas, enfrentamos o esquecimento após a morte. Por meio de sua perspectiva pessoal e subjetiva, Brás Cubas compartilha sua história, apresentando os fatos e demais personagens de uma forma que permite ao leitor sentir-se conectado tanto ao narrador quanto à trama. Além disso, a experiência de leitura é potente devido ao uso da ironia e do eufemismo. São recursos que ajudam a compreender o significado por trás das descrições e das passagens da história. Ao longo da obra, Machado de Assis oferece uma análise negativa do comportamento social e das lutas psicológicas das personagens. No entanto, esta visão pessimista é muitas vezes disfarçada ou escondida sob a superfície da narrativa, com o humor e a ironia a servirem como ferramentas poderosas.
Assim, a história serve como um retrato da burguesia carioca e de suas lutas pessoais. Por meio das reflexões pessimistas de Brás Cubas, os leitores são expostos às suas desilusões e as experiências em relação à riqueza, à condição social e à busca pela felicidade. É fundamental abordar este livro com atenção, pois é possível desenvolver uma percepção positiva do narrador. Brás Cubas, membro de uma elite improdutiva e arrogante, usa a sua posição privilegiada para satirizar a sociedade e os seus constituintes com uma ironia mordaz que não poupa ninguém. Obra-prima atemporal e universal, Memórias Póstumas de Brás Cubas oferece uma visão histórica essencial da nossa sociedade. Leitura indispensável.
“Ah! indiscreta! Ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”