Queria Estar Lendo 06/10/2018
Resenha: Vox
O que são 100 palavras em um dia? Nada significante. Algumas frases aleatórias. Pouco mais de um tweet. Imagine que um governo estabelece que você, mulher, não tem o direito de falar mais do que essas 100 palavras por dia - se o fizer, vai ser punida. O tipo de punição que se expande terrivelmente até seu fim. Vox, lançamento da autora Christina Dalcher, é a história sobre um país dominado pela opressão, onde as mulheres foram forçadas a se calar.
Este ARC foi cedido em cortesia pela Editora Arqueiro. As quotes citadas nesta resenha não estão de acordo com a revisão definitiva, então podem mudar na edição final.
Na trama, os Estados Unidos estão sob um governo extremista; conservador e regido pela religião. Desde a vitória desse presidente, o terrorismo corre solto na perseguição aos Direitos Humanos, mas principalmente às mulheres. Subjugadas pela religião, que prega sua inferioridade diante dos homens, foram obrigadas a se calar. 100 palavras por dia é determinado como suficiente para que elas vivam e se comuniquem. Se falarem uma palavra a mais do que isso, as pulseiras presas aos seus corpos disparam choques como punição; não precisam mais trabalhar ou interagir com as pessoas fora de sua casa e de sua família. Não precisam ter uma voz quando significam tão pouco para a ideologia perigosa do governo.
A Dra. Jean McClellan tem experimentado o inferno. Cientista e fonoaudióloga, ela estudou a fala e as palavras durante toda a sua vida para vê-las arrancadas de seu alcance com brutalidade e repressão. Porém, quando Jean é a única capaz de ajudar o presidente em uma tarefa tida como impossível, quando é estendida a ela uma chance de recuperar suas palavras para, quem sabe, fazer desse acontecimento uma tentativa de rebelião,Jean precisa confrontar sua realidade, sua família e o perigo de erguer a voz em um mundo silenciado pela violência e pelo medo.
"Pensem em expressões como "permissão do cônjuge" e "consentimento paterno". Pensem em acordar um dia e descobrir que não têm voz em nada."
Vox foi uma montanha-russa de emoções do início ao fim. Um livro visceral e desesperador, com uma narrativa frenética e equilibrada. É o tipo de história que te faz virar as páginas ansiosamente, curiosidade e medo trilhando os capítulos por vir. Tal como O Conto da Aia, é uma distopia extremamente atual; fala sobre machismo em sua mais vil e "pura" intenção, que é a de rebaixar as mulheres única e exclusivamente por seu gênero. Fala também da tirania contra outras minorias, do quão nociva e mortífera é a ideia de superioridade. De que alguém se coloque acima de todo o resto unicamente por algumas características que os diferenciam.
Os Puros da história são, em sua maioria, homens. São os detentores da voz, os responsáveis por roubar das mulheres sua liberdade, sua presença no mercado de trabalho e no dia-a-dia. São aqueles que olharam para o louco que pregava tais ideias e o consideraram o salvador da pátria.
"Talvez tenha sido isso que aconteceu na Alemanha com os nazistas, na Bósnia com os sérvios, em Ruanda com os hutus. Às vezes eu refletia sobre isso, sobre como crianças podem se transformar em monstros, como aprendem que matar é certo e a opressão é justa, como em uma única geração o mundo pode muar tanto até ficar irreconhecível. É fácil, penso."
O livro também dá uma amostra de mulheres que escolheram acreditar nas pregações da religião e do governo como o discurso mais sensato, a "única saída". Assim como fala sobre o apoio, também fala sobre o arrependimento que cresceu quando o poder chegou às mãos daquele monstro.
"O que as meninas estudam agora? Um pouco de soma e subtração, ver as horas, saber contar o troco. Contar, claro. Devem aprender a contar até cem."
Parece familiar? A gente conhece, através da História, o poder de um discurso extremista. Vimos o que o nazismo fez com o mundo - o que ainda faz -, as marcas que a Ditadura Militar deixou em nosso país. Vox nada mais é do que um retrato da atualidade; não me surpreenderia nada ver um candidato subindo ao palco e clamando que as mulheres devem ser caladas. Não me surpreenderia nada uma multidão louvando sua candidatura.
Quanto mais próxima da realidade que vivemos, mais assustadora é uma distopia. A leitura de Vox me deu angústia, me deu raiva, me deu vontade de sair gritando 101 palavras, 201, 301 palavras só para ter certeza de que elas ainda me pertenciam. Ler a jornada da Dra. Jean foi uma experiência revoltante e esperançosa; saber seus pensamentos e seu desejo de liberdade, ler seus pequenos atos de rebelião ascendendo a coisas mais notáveis foi aquela faísca de esperança sempre tão presente e necessária em histórias desse tipo.
"- Tenha cuidado, querida. Você tem muito mais a perder do que sua voz."
Achei Jean uma protagonista sensata e coesa. Madura e bem desenvolvida. É uma cidadã que, num passado, foi apática à política e ao chamado à luta das feministas e agora vê a consequência do seu silêncio. É uma sobrevivente da opressão e da tirania. Uma guerreira que riu e se deliciou ao ver que a única esperança do homem que tirou sua voz estava em suas mãos. Uma mãe. Uma filha. Uma cientista. Uma mulher.
Sua relação com o marido, Patrick - uma figura sensata, mas cautelosa dentro do cenário político em que vivem - é pautada em um misto de revolta pelo silêncio dele e compreensão pelo cuidado. A relação dela com o cientista Lorenzo foi mais interessante, mas acho que eu estava tão fisgada pela trama política e revolucionária que acabei não me ligando tanto à parte amorosa da história. A familiar prendeu mais minha atenção.
"A insensatez dos homens sempre foi tolerada."
Jane tem três filhos; Steven, o mais velho. Os gêmeos, mais apagados dentro da trama. E Sonia, sua caçula - já punida com a presença da pulseira de choque. Com Steven, os embates são revoltantes. Com Sonia, são desesperadores. Jane confronta vários lados das ideologias extremistas e da doutrinação religiosa que vêm crescendo no país. Steven, um peão das ideias absurdas, me fez revirar os olhos e querer gritar em dezenas de cenas. É o retrato de como se constrói um fascista. Como se faz acreditar que ideais de supremacia são corretos.
Sonia, por outro lado, é a vítima em todo seu cerne. Uma criança que não vê o terror, vendada para a parte ruim de todo aquele cenário, doutrinada a segui-lo à risca para ser recompensada. Se não falar, pode ganhar um sorvete. Se ficar quieta durante todo o dia, vai ser a melhor aluna da turma - o fato de Jane temer pelo que a tortura física faria pela filha bate de frente com o medo de vê-la subjugada pelo sistema.
Além dos filhos, Jane tem grandes momentos de flashbacks, voltando a tempos onde ainda havia liberdade e voz, onde escolheu não ouvir Jackie, sua melhor amiga, ativista feminista, a respeito das atrocidades que o candidato à presidência vinha espalhando. É bastante interessante como a Jane oprimida encara a que desconhecia a opressão; como ela se vê ingênua e cega a coisas que agora são tão óbvias. Como escolheu fechar os olhos a fazer alguma coisa para mudar uma possibilidade - possibilidade essa que agora é a realidade e seu maior pesadelo. Como batia de frente com a Jackie em relação aos protestos e às críticas diárias e como percebeu, da pior maneira, o quanto sua amiga tinha razão.
"- Honestamente, Jacko... Você está ficando histérica.
- Bom, alguém precisa ficar histérica por aqui."
Eu poderia me estender muito mais a respeito dessa história, mas parte da grandiosidade de Vox está no meio do livro. Nas reviravoltas mais do que inesperadas, dos caminhos obscuros e questionadores que a obra toma. Todo o desenvolvimento de Jane em relação ao pedido do presidente e dos rumos que sua aceitação a levam são grandiosos e chocantes.
Uma única ressalva sobre o livro, para mim, fica com o final. Acho que 90% da história estava indo muito bem, mas aqueles 10% do fim soaram um pouco... distantes. A ideia que uma parte da trama me vendeu não batia com o que estava sendo entregue. Não é ruim, longe disso. É conciso e carregado em adrenalina e faz com que você não consiga respirar até entender o que vai acontecer. Aos meus olhos, no entanto, não me convenceu por completo.
A Editora Arqueiro deu um salto grandioso e empoderador ao trazer esse livro para cá e eu só posso agradecê-los e garantir que vou indicar Vox para todo mundo.
"Todas aquelas casas são pequenas prisões, penso, e dentro delas existem celas na forma de cozinhas, lavanderias e quartos."
Vox é uma história sobre as mulheres. As sobreviventes de uma tirania. As vozes forçadas a se calar que encontraram outros meios para se fazer ouvir. É um livro poderoso, inestimável e extremamente necessário nos tempos sombrios que estamos vivenciando; onde a força da voz de um opressor é e sempre vai ser calada pelo grito de milhões de mulheres.
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