Vanessa 31/05/2022Pensando a noção de obstáculos epistemológicos o autor se preocupa em frisar que não são obstáculos externos que dificultam o trabalho científico, mas sim obstáculos inerentes ao âmago do ato de conhecer. O conhecimento do real não revela a totalidade completa. ?Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber?. (BACHELARD, 1996, p. 18)
Um dos obstáculos presentes na epistemologia e que precisa ser superado é a opinião. Nenhum conhecimento científico pode ser baseado em opinião. A opinião está sempre errada, não é possível corrigi-la.
Para que o conhecimento científico possa ser desenvolvido é necessário o levantamento de perguntas. São as perguntas, ou problemas, que movem o saber. ?Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado?. (BACHELARD, 1996, p. 19) Precisamos ter cautela com as ideias, pois uma ideia que é frequentemente disseminada pode aparentar um falso conhecimento e dominar o pensamento a cerca de um tema. Alguns pesquisadores ao longo da vida vão criando certezas absolutas e criam preferência por conservar suas teorias, sem contestá-las, sem criar novas perguntas, sem contradize-las.
Sobre o conhecimento empírico pode-se afirmar que manifesta-se pela sensibilidade humana. ?Quando o conhecimento empírico se racionaliza, nunca se pode garantir que valores sensíveis primitivos não interfiram nos argumentos?. (BACHELARD, 1996, p. 20) O conhecimento não deve ser capitalizado como riqueza material. Cabeça fechada é produto da escola. Bachelard (1996, p. 20) afirma que uma cabeça bem feita precisa ser refeita. As descobertas científicas modificam a cabeça e o espírito humano e o levam sempre a questionar mais e melhor.
O primeiro obstáculo é a experiência primeira, ou seja, quando a experiência é colocada antes e acima da crítica visto que é a crítica importante elemento do espírito científico. Esses conhecimentos primeiros são frágeis.
Para o autor o espírito científico deve formar-se contra a Natureza e o impulso natural. Para aprender-se com a natureza é necessário purificar as substâncias e ordenar os fenômenos naturais.
Não é fácil captar de imediato o sentido desta tese, porque a educação científica elementar costuma, em nossa época, interpor entre a Natureza e o observador livros muito corretos, muito bem apresentados. Os livros de física, que há meio século são cuidadosamente copiados uns dos outros, fornecem aos alunos uma ciência socializada, imóvel, que, graças à estranha persistência do programa dos exames universitários, chega a passar como natural; mas não é; já não é natural. Já não é a ciência da rua e do campo. É uma ciência elaborada num mau laboratório mas que traz assim mesmo a feliz marca desse laboratório. (BACHELARD, 1996, p. 30)
Esse conhecimento já está desligado das observações primeiras. Até o século XVIII, no período pré-científico, os livros interessavam-se pela vida cotidiana sem um controle do ensino oficial, apenas atinha-se a divulgar conhecimento popular. O livro dialogava com o leitor trazendo à tona seus interesses e preocupações naturais. Eram raras as obras de qualidade. Com a ciência moderna essa característica dos livros se transforma: ?Passadas as primeiras páginas, já não resta lugar para o senso comum; nem se ouvem as perguntas do leitor?. (BACHELARD, 1996, p. 31) O livro passa a comandar as perguntas e o conhecimento.
Para Bachelard (1996, p. 69), nada foi mais prejudicial ao conhecimento científico do que a ideia de um conhecimento geral. O conhecimento geral, desta forma, apresenta-se como obstáculo ao conhecimento científico. Essa falsa ideia de doutrina geral dominou pensadores de Aristóteles a Bacon. A busca por generalizações leva a enganos nas formulações científicas. Bachelard (1996, p. 69-70) exemplifica:
Para mostrar a imobilidade dos resumos muito gerais, consideremos um exemplo. Quase sempre, a fim de indicar de modo simples como o raciocínio indutivo, baseado numa série de fatos particulares, leva à lei científica geral, os professores de filosofia descrevem rapidamente a queda de vários corpos e concluem: todos os corpos caem. Para se desculparem de tal banalidade, pretendem mostrar que, com esse exemplo, têm o indispensável para marcar um progresso decisivo do pensamento científico. De fato, nesse ponto, o pensamento moderno apresenta-se com relação ao pensamento aristotélico como generalidade retificada, como generalidade ampliada. Aristóteles ensinava que os corpos leves, fumaça e vapor, fogo e chama, encontravam no empíreo seu lugar natural, ao passo que os graves procuravam naturalmente a terra. Ao inverso, nossos professores de filosofia ensinam que todos os corpos, sem exceção, caem. E assim fica estabelecida, acham eles, a sadia doutrina da gravitação.
Para os filósofos o fundamento da cultura científica deveria ser as grandes generalidades. Cada ciência deveria ter sua verdade primeira (intocável) como fundamento de todo conhecimento. Essas verdades normalmente vieram em substituição à pensamentos falhos e nesse sentido tiveram eficácia, porém, já não são tão eficazes uma vez que bloqueiam as ideias e a origem de novas perguntas. Essa forma de resposta rápida enfraquece o pensamento experimental, pois, a lei geral é fechada, clara e completa não deixando necessidade de estudos mais minuciosos. A generalidade imobiliza o pensamento. (BACHELARD, 1996, p. 72)
Bachelard (1996, p. 91-95) traz para discussão a questão de obstáculos verbais e como exemplo de obstáculo verbal: a esponja. A palavra esponja é uma palavra simples, um substantivo carregado de adjetivos aos quais alguns pesquisadores trataram de comparar com fenômenos da natureza. Esse obstáculo epistemológico diz respeito a relação que se cria entre uma palavra concreta (conhecida, aqui como exemplo esponja) e uma palavra abstrata em que o pesquisador acredita estar deixando muito clara suas ideias sobre um fenômeno. ?A função da esponja é de uma evidência clara e distinta, a tal ponto que não se sente a necessidade de explicá-la?. (BACHELARD, 1996, p. 91) Para tornar mais claro o autor cita alguns pesquisadores que utilizaram a palavra esponja para explicar suas teorias:
Réaumur (1731): relaciona esponja com o ar, tratando da capacidade de absorção de água, dissolução de sal, fala que o ar pode ser penetrado pela água, assim como a esponja e também pode ser comprimível.
Franklin (1752): afirma que a matéria comum é uma espécie de esponja para o fluido elétrico.
Padre Béraut, encontra-se condensada esta dupla explicação: os vidros e matérias vitrificáveis são "esponjas de luz porque (estão) cheios da matéria que constitui a luz; pelo mesmo motivo, pode-se dizer que são esponjas de matéria elétrica".
Lémery chamava a pedra de Bolonha de "esponja de luz".
Marat (1779) explica o resfriamento de um corpo quente imerso no ar ou na água: "No caso, o ar e a água agem apenas como esponjas; porque um corpo, quando encosta em outro, só o resfria se absorver o fluido ígneo que este outro corpo desprende".
O conhecimento unitário e pragmático como obstáculo ao conhecimento científico. Generalidades são obstáculos ao conhecimento científico. Uma característica do conhecimento pré-científico apresentada por Bachelard (1996, p. 103-107) diz respeito a um aspecto literário presente em muitos textos e que destacavam princípios da perfeição da natureza facilmente relacionados com a figura do criador. Essa literariedade apresenta uma valorização abusiva do objeto de estudo. Tendo como exemplo:
Um livro escrito sob a forma de cartas familiares, um autor desconhecido assim começa o seu Planétaire ou abrégé de 'histoire du Ciei [Planetário ou resumo da história do Céu]: "Será ousado demais querer voar até a abóbada celeste? Quem me acusará de temeridade por querer eu examinar essas tochas que parecem suspensas no arco do firmamento?" (BACHELARD, 1996, p. 104)
Sobre o aspecto religioso é possível observar no seguinte trecho trazido pelo autor: ?Consideramos a luz, esse ser que, cada dia, parece produzir de novo o universo a nossos olhos e nos retraça a imagem da criação". (BACHELARD, 1996, p. 104)
Bachelard (1996) trata o obstáculo substancialista como polimorfo (Característica daquilo que pode alterar sua forma natural). ?Por uma tendência quase natural, o espírito pré-científico condensa num objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel, sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos?. (BACHELARD, 1996, p. 121)
Destaca que é possível falar de um substancialismo oculto, do íntimo, ou da qualidade evidente. Mas o substancialismo prevalece da experiencia externa deixando escapar à crítica pelo mergulho na intimidade. Deve-se ter cautela com explicações dissimuladas por artifícios da linguagem e que podem dar a impressão de estar adquirindo um conhecimento. Quando um nome erudito satisfaz a explicação de um fenômeno para uma mente preguiçosa.
Na psicologia literária quando alguém fala com tom de profundidade será considerado psicólogo da vida íntima, só que apesar do uso da palavra profundo a impressão permanece superficial. Trazendo essa questão para a análise dos objetos o autor destaca que o psicólogo da intimidade e o realista ingênuo obedecem à mesma sedução, pois o realismo se refere a uma intimidade, à um conteúdo intrínseco ao objeto. ?Ao examinar tais intuições, logo se percebe que, para o espírito pré-científico, a substância tem um interior; ou melhor, a substância é um interior?. (BACHELARD, 1996, p. 123)
Outra ideia difundida pelo substancialismo é o da necessidade de abrir a substância para desvendar o objeto ou virar do avesso a substância.
Em Psicanálise do realista Bachelard (1996) afirma que a ideia de substância é muito clara, simples e aceita como um bem pessoal, capaz de tornar o realismo um instinto. O realista por acreditar ter o real do seu lado se encontra em vantagem sobre um adversário. Bachelard afirma que todo realista é um avarento. ?Enfim, o axioma fundamental do realismo não provado ? nada se perde, nada se cria ? é uma afirmação de avarento?. (BACHELARD, 1996, p. 164)
Em seguida trata do complexo do pequeno lucro como obstáculo à cultura científica, pois valoriza aparências objetivas, matérias particulares. Isso cria uma racionalização parcial. ?Mas, no caso, a racionalização prejudica a pesquisa puramente racional. A mistura de pensamento erudito e de pensamento experimental é, com efeito, um dos maiores obstáculos para o espírito científico?. (BACHELARD, 1996, p. 166) E completa: ?O primeiro sinal da certeza científica é o fato de ela poder ser revivida tanto em sua análise quanto em sua síntese?.