Thales 29/10/2020
Life changing
Sem dúvida um dos textos mais importantes que já li. Tô me cobrando muito por não tê-lo lido mais cedo na vida. Já conhecia o mote central disto que fora um discurso de Umberto Eco, mas, santa mãe, a profundidade - e objetividade, porque este é obviamente um texto breve - com que ele identifica as características disso que ele chama "Ür-fascismo" ou "Fascismo eterno", a forma contemporânea de fascismo, é algo completamente assustador.
Primeiro ele apresenta o que foi o este movimento basilar para o curso do século XX:
"(...) o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do 'destino fatal de Roma', em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo (...)"
Nem sempre, porém, o fascismo se apresentava da mesma forma. Ele era como que um amálgama de noções difusas, e apresentava particularidades dependendo de onde se instalasse:
"O fascismo era um 'totalitarismo fuzzy'. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?"
Complementando:
"O termo 'fascismo' adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola."
Após as conceituações, Eco apresenta, de forma didática e topicada, como esse tal "Ür-fascismo" poderia de manifestar, quais suas características. Não necessariamente um movimento ür-fascista teria todas as 14 características apresentadas, mas a maioria delas, mais ou menos na linha do que ele já havia dito sobre o fascismo tradicional. Eis um resumo destas características: tradicionalismo hostil, uma busca por "encaixar" clássicos e noções enraizadas na sociedade dentro da "gaveta" fascista; a recusa pela modernidade, expressa na repulsa ao mundo erguido a partir de 1789 ou 1776, considerado o ponto culminante da derrocada da humanidade, o que dialoga com o tradicionalismo; negação da intelecualidade - e desde lá Eco percebia a pecha por dizer que as universidades estavam lotadas de comunistas -, o que dialoga com a supressão de qualquer espírito crítico. O "movimento" é inviolável, portanto criticá-lo é uma afronta, uma aberração, quase uma heresia; racismo, expresso na negação da diferença, pois o ür-fascismo é um movimento de consenso; busca por uma massa de recalcados - Eco já vislumbrava a relevância das "classes médias frustradas"; nacionalismo e uma paranoia com um pretenso "globalismo". "Os seguidores têm que se sentir sitiados", dizia o autor; busca pela coação a partir de um estado de guerra constante, pelo menos na retórica; um certo sentido de heroísmo, que sai do campo do mito e transforma qualquer indivíduo comum em um pretenso ser excepcional cuja maior honraria seria morrer pela causa; obsessão por demonstrações fálicas de poder, expressa nas armas, no machismo, na negação da castidade e etc.; a supressão do indivíduo singular e criação de uma massa una chamada de "povo", cujo líder é porta-voz. Inclusive vem daí um momento chave do discurso de Eco: "cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a 'voz do povo', pode-se sentir o cheiro de Ür-Fascismo."; uma certa "novafala", bem nos moldes de 1984, que limite a mensagem a um discurso parco, encurtado, limitando também a linguagem e, portanto, a capacidade de raciocinar.
É um assombro deparar com tais características, tão presentes no mundo atual. Quando olhamos para a realidade brasileira vemos uma caricatura assustadora deste movimento. Este discurso de Umberto Eco é, portanto, extremamente necessário.