Lucas Rabêlo 31/08/2022
O extravasamento da arte (e do amor)
Tecida em menos de 100 páginas, esta novela sublima o óbvio que permeia qualquer ser humano, a sufocante sentimentalização ao ver-nos afetados de amor – Gustav von Aschenbach sente a manifestação irrefreada sob a estonteante paisagem mediterrânea, sofre pela beleza idealizada num lugar que também materializa a rara beleza. Tema caro ao artista, ele próprio um, a sua discursiva custa refletir sobre as predisposições do mundo; para Thomas Mann, racionalmente são incutidos paralelos geracionais, estéticos, literários, históricos. Eis um estudo societário acrônico.
Vivendo em Munique, laureado em excelência por seu trabalho literário e em meia idade, o escritor Aschenbach permite-se, em inquietude, desapegar-se do cotidiano, sendo tão metódico, e partir para além da Alemanha. Propenso a permanecer na Europa, em desdenho externo personificado no típico cidadão do velho continente, aporta em Veneza, cidade italiana que corriqueiramente o recebe em estações intercaladas. Logo, sua identidade se esvai ao confrontar Tadzio, um jovem polonês hospedado no mesmo hotel, que perturbará sua confiança e o reduzirá à metáfora da decadência.
Ele restitui no garoto a exaltação do belo ao compará-lo em vestígios das personificações gregas, do inalcançável e insuperável. Sua paixão platônica lhe sugere denominá-lo um Goethe moderno, fadado também à tragédia. Proveniente disto, sua decadência se instala no instante recaído os olhos no rapaz; sua tragicidade será deflorada por aspectos filosóficos interpostos por Mann em diversos parágrafos que se constituem em diversas leituras, apresentadas diante das muitas interpretações presumidas. O suposto contexto queer é outra das alegorias ajeitadas para intuir ao leitor uma tentativa canônica de não restrição temática, tanto o afeto de Aschenbach pode direcionar ao romântico quanto ao que a compleição física de Tadzio repercute no deslumbrado.
Enquanto um homem de juízo austero, genioso e intelectualizado, também resvala em si aspectos exprimidos do espírito machista, para ele, o homem detém a completa referência superior às fragilidades humanas, diferente das mulheres: porém, é ele quem, no fim, de opulência profissional, suprime ao desatino dos desejos íntimos. Não só, de se defrontar diante da síntese oposta que se veem a juventude e a velhice, o fútil e o imprescindível, o clássico e o moderno. Mann, representante contemporâneo, discorre as mazelas interiorizadas e extirpadas pela grande roda sistêmica social, a burguesia que se apropria da incoerência postural decaída e se restringe dela, numa subalternidade ao que é fresco, na supervalorização do novo – mesmo este limitado.
Por fim, seria inegável Mann não consumar seu talento de modo intencional num dos modelos artísticos mais expositivos, a literatura. Se na conclusão extinguir o personagem é a solução para seu protagonista em sofrimento, ainda sua morte será eternizada (morte que atinge o aforisma simbólico do título, não apenas físico, mas de sua apreensão infundada). A memória de Aschenbach, na extravagância do amor e do seu legado perante a discutida fixação pessoal e mental, eterniza-se na arte. Morre no enredo, relega sua jornada fatídica pelo impossível para sempre.
"Mesmo sob o prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais profunda e um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir." Página 19.