Sofia Dionísio 31/12/2023
Difícil de odiar
Puta merda, esse é difícil. Minha relação com José de Alencar é complicada, eu tenho um grande ranço por ele mas consigo ver onde ele foi de fato um bom escritor. E ao contrário do "fácil de odiar" de Iracema, Lucíola é "difícil de odiar", por assim dizer. Ele tem algumas camadas de "não-confiabilidade" diegéticas: o narrador é em primeira pessoa, e tem seus vieses; ele narra algo de suas memórias, narrando ações e impressões de alguém que ele não é mais, o que nubla ainda mais a "realidade" do que aconteceu; e, por fim, a obra em si é resultado de uma amiga do protagonista pegando esse relato recebido em cartas, feito anos depois dos acontecimentos, e transformando em um romance, a partir de seus próprios critérios. Então quando o romance se torna uma "fantasia de redenção", onde um cara 🤬 #$%!& e babaca faz a puta se arrepender e virar santa, tão santa que não pode nem mais transar, a quem eu atribuo o nojo que isso me causa? Ao Paulo personagem? Ao Paulo narrador? À amiga mais velha dele que editou a história? Ao narrador implícito? Ao misógino do José de Alencar, e chuto o "difunto"? Porque o que mais complica a história e a minha relação com ela é a Lúcia. Porque a Lúcia parece de verdade. Mesmo que o Paulo seja um asqueroso e suas ações abusivas sejam normalizadas, mesmo que a história pareça se distorcer para fazer Lúcia ser um troféu santificado... eu ainda sinto que, no fundo, há uma Lúcia de verdade (uma Maria da Glória), até, que está sendo representada de maneira torpe, distorcida. E isso é uma sensação esquisitíssima. Uma sensação de que a personagem está sendo injustiçada, maltratada pelo livro ao qual ela pertence. Talvez seja aí que more a genialidade de Alencar, ou pelo menos dessa obra. É isso que faz esse livro difícil de odiar, e talvez merecedor de uma releitura, de mais reflexões.