spoiler visualizarsoufernanda 27/09/2023
Lucíola: três mulheres em um corpo
Meus professores estão sempre dizendo "não chorem durante as leituras", pois isso significa que você caiu nas armadilhas do autor. Durante a leitura de "Lucíola" eu me permiti deixar a emoção transbordar e chorei com a morte da personagem como se perdesse algum parente próximo.
Os contatos que já tive com as obras de José de Alencar foram todos muito agradáveis e com este livro na foi diferente. É simplesmente genial.
Apesar de ter uma obra muito bem construída do início ao fim, há três aspectos da narrativa que que gostaria de destacar:
1. A construção das várias personalidades:
Quando avançamos na leitura, descobrimos que o nome verdadeiro de "Lúcia" é "Maria da Glória", pois nascera em 15 de agosto, dia em que se celebra a santa de mesmo nome.
Maria da Glória era uma jovem menina cuja sorte a obrigou a trocar sua inocência por dinheiro. Embora tenha feito esta barganha com a melhor e mais pura das intenções, seu esforço foi retribuído com ingratidão e desprezo. Sozinha no mundo, Maria da Glória entrega-se à única opção que poderia salvá-la da miséria absoluta: a prostituição. No entanto, como não queria lançar sobre sua família a imoralidade de suas atitudes, roubou o nome de uma jovem que morrera junto dela.
Assim, sepulta-se Maria da Glória e nasce Lúcia!
Com este nome, a personagem apresenta-se como uma mulher cuja exuberante beleza é capaz de subjulgar qualquer homem, possuidora de uma sagacidade impressionante e, principalmente, ambígua. Lúcia é uma cortesã sem escrúpulos, mas, curiosamente, comporta-se com uma dignidade desconcertante, fazendo com que as pessoas, não raramente, sintam-se culpadas por tratá-la como a cortesã que é.
Por fim, nas páginas finais do livro, Lúcia retoma sua identidade como Maria da Glória, mas, ainda que assuma uma atitude um tanto quanto pueril, ela não é capaz de voltar a ser a mesma menina de antes, pois carrega as manchas de sua vida como cortesã. Ainda sim, por mais absurdo que possa parecer, há neste ponto uma inegável aproximação entre esta alma cheia de pecados e o sagrado, o divino.
Assim, constroem-se as três personalidades dessa paradoxal mulher.
2. Onomástica
Acompanhando as personalidades, estão os nomes cuidadosamente escolhidos por José de Alencar para identificá-las e, mais que isso, traduzi-las.
- LÚCIA representa perfeitamente a ambiguidade da cortesã, visto que o estudo da etimologia deste nome revela que sua raiz pode remeter às palavras que significam "Luz" ou "Lúcifer".
- "MARIA DA GLÓRIA" representa a pureza de menina através da junção de "Maria", que remete à figura feminina sagrada do cristianismo (Virgem Maria), mas também tem o significado de "senhora" e "Glória" que é uma outra forma de referir-se à mãe de Cristo, atribui a qualidade de honradez à pessoa portadora do nome. Juntos, significam "senhora excelsa", "senhora honrada".
- "MARIA" é o nome pelo qual a moça pede para ser chamada no exórdio da obra. Sendo abreviação de "Maria da Glória", percebe-se neste ponto a utilização do primeiro nome como reforço à religiosidade resgatada pela personagem neste momento da narrativa.
3. A reconstrução da narrativa bíblica da Páscoa
Para concretizar o teor moralizante da obra, José de Alencar narra a "morte" de Lúcia, a pecadora, e sua ressurreição como ser divino.
Reparem que a morte de "Maria", no fim da obra, não é narrada como castigo e sim como a libertação de sua alma pura do seu corpo humano cheio de pecados, tal como ocorreu com Jesus.