Javalis de Chernobyl 28/08/2024
“Em geral, me dava um branco a partir do meio-dia. Às vezes, a gente acorda de um sonho e pensa: “Meu Deus, será que eu fiz mesmo isso?”. A fronteira entre o dizer e o pensar se torna ambígua. “Eu falei aquilo ou só pensei?”(pag.149)
Me agrada muito essa forma narrativa descontinuada em que os fatos acontecem de forma espaçada, onde não há um vínculo na história que guie os personagens e cada ato é um ato em si mesmo, quase sem ligação com os outros, como se fossem crônicas. Me lembra muito Pedro Juan Gutierrez. Em outras mídias, a série Atlanta faz isso muito bem também.
De maneira geral, a escrita de Burroughs tem um tom documental sobre a vida (ou, como ele diz, o "modo de vida") dos “junkies” e seu vício, o modus operandi nas ruas, as drogas, seus usos e particularidades, etc. Pelo que entendi do texto inicial de Allen Ginzberg, sua ideia era justamente de trazer esse debate de forma até “didática” (não de forma ruim) a partir das arte, já que o debate público, naquele momento, evitava o assunto.
Um ponto negativo pra mim é que justamente esse tom documental, descritivo de como é a vida de um junky e como as coisas acontecem, desumaniza os personagens. A maioria são rasos, quando não irritantes. Os fatos narrados são repetitivos e até mesmo o narrador soa superficial. Por serem muitos personagens, as vezes é difícil identificá-los ou reconhecê-los ao longo da história, já que todos são meio que "NPCs drogados", todos iguais.
Essa coisa do modo de vida junky pra mim soa um pouco como uma visão sarcástica, até paródica, do autor com o "american way of life", que ganhava forças nos EUA do pós-guerra, com a Era de Ouro do liberalismo e com as políticas social-democratas em voga. Ao meu ver, Burroughs aponta para as contradições do cotidiano americano quando joga seus holofotes sob as vidas daqueles que estão à margem do estilo de vida americano.