Fabio Shiva 11/05/2024
ENTRE A ERA DO JAZZ E A ERA DO TIKTOK: QUE LADO DO PARAÍSO VOCÊ PREFERE?
Depois de assistir à ótima série “Z - o começo de tudo” (https://youtu.be/-yNBZAN-gaI), que apresenta os anos iniciais do conturbado relacionamento entre Zelda e Scott Fitzgerald, decidi finalmente pegar para ler esse livro que ficou tanto tempo pacientemente esperando sua vez em minha estante. Trata-se do aclamado romance de estreia de F. Scott Fitzgerald, de quem eu já havia lido sua possivelmente obra-prima, “O Grande Gatsby”.
Dessa vez, tive a oportunidade de ler no original em inglês (“This Side of Paradise”), o que me permitiu apreciar melhor o estilo elegante e cheio de tiradas espertas de Fitzgerald (seguem em tradução livre minha):
“Para pessoas como nós, o lar é onde não estamos.”
“Pessoas egoístas são de certo modo terrivelmente capazes de grandes amores.”
“Eu não sou sentimental - sou tão romântico quanto você. A ideia, você sabe, é que a pessoa sentimental pensa que as coisas irão durar - a pessoa romântica tem desesperada confiança de que não irão.”
“Eu não quero repetir minha inocência. Eu quero o prazer de perdê-la novamente.”
“Apesar de cérebros e habilidades dos homens poderem ser diferentes, seus estômagos são essencialmente os mesmos.”
Esse esforço deliberado e constante de elaborar frases de efeito, aliás, é uma característica em comum tanto do autor quanto do protagonista de sua história, o jovem e talentoso Amory Blaine. Esse foi o ponto mais marcante da leitura para mim, suscitando algumas boas reflexões. Como escritor, já busquei muito esse tipo de prosa recheada de pérolas de sagacidade. Atualmente, contudo, sinto que esse tipo de literatura tinha mais validade e relevância há cem anos atrás que atualmente. Quando vejo um autor contemporâneo tentando cunhar frases “espertas”, o resultado me parece artificial e forçado. Em minha própria escrita, tenho buscado dizer as coisas do modo mais direto possível, recorrendo aqui e ali à Poesia (no lugar da “esperteza”). Mas isso, obviamente, reflete apenas a minha busca pessoal.
“Este Lado do Paraíso” é bem mais que um punhado de frases de efeito, tanto que se tornou um dos principais romances a retratar a chamada “Era do Jazz”, termo cunhado pelo próprio Fitzgerald. Dentre as características mais interessantes dessa época estão a liberdade sexual e a relativa autonomia das mulheres, que me parecem bem mais pronunciadas que no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, trinta anos depois da publicação desse livro. Uma boa síntese disso aparece nesse diálogo entre Gillespie e sua amada Rosalind (personagem que foi bastante inspirada em Zelda Fitzgerald):
“GILLESPIE: Eu te amo.
ROSALIND [friamente]: Eu sei.
GILLESPIE: E você não me beija há duas semanas. Eu pensava que depois que uma garota fosse beijada ela havia sido - sido - conquistada.
ROSALIND: Esses dias se foram. Eu tenho que ser conquistada novamente a cada vez que você me vê.
GILLESPIE: Está falando sério?
ROSALIND: Como sempre. Costumava haver dois tipos de beijo. Primeiro, quando as garotas eram beijadas e abandonadas; segundo, quando noivavam. Agora há um terceiro tipo, em que o homem é beijado e abandonado. (...) Se tiver um começo razoável, qualquer garota pode vencer um homem hoje em dia.”
Penso que muito da força que o nazismo e o fascismo tiveram no mundo a partir da década de 1930 se deve a uma reação conservadora que tentava sufocar a liberdade sexual vivenciada durante a década de 1920. Ao observar a ascensão da extrema direita no mundo hoje em dia, é forçoso atribuir boa parte de sua motivação à misoginia, à homofobia e ao racismo. A história se repete como farsa, já dizia Karl Marx.
Outro trecho reforçou esse paralelismo entre a “Era do Jazz” de 100 anos atrás e a “Era do TikTok” que vivemos hoje:
“A vida moderna (...) não muda mais século a século, mas ano a ano, dez vezes mais rápido do que jamais foi antes.”
O socialismo, aliás, é um dos temas explorados em “Este Lado do Paraíso”, ainda que de forma estritamente teórica (lembremos que o livro foi publicado em 1920, apenas três anos após o início da Revolução Russa). O tratamento do tema pode bem ser considerado dialético, a partir das reflexões cáusticas do protagonista Amory a respeito dos pobres:
“Eu detesto pessoas pobres (...). Eu as odeio por serem pobres. A pobreza pode ter sido bela certa vez, mas agora é podre. É a coisa mais feia do mundo. É essencialmente mais limpo ser corrupto e rico que ser inocente e pobre.”
Essas afirmações são logo seguidas por uma espécie de código moral que norteia Amory:
“Ele não fez autoacusações: nunca mais ele iria se recriminar por sentimentos que eram naturais e sinceros.”
E logo depois vemos essa mesma causticidade se voltar contra a classe média, em um curioso senso de justiça:
“Eles não acham que pessoas sem educação [formal] devam receber altos salários, mas não veem que se não pagarem bem essas pessoas seus filhos também não terão acesso à educação.”
Não faltam contradições ao protagonista, como quando ele sente uma fúria assassina contra tudo que a sua época simboliza:
“Pela primeira vez em sua vida ele ansiou para que a morte passasse por cima de sua geração, obliterando suas paixões mesquinhas, suas lutas e exaltações.”
Essas contradições só tornam o personagem mais real e marcante em sua jornada em busca de si mesmo:
“Ele sentiu que estava deixando para trás sua chance de ser um certo tipo de artista. Parecia muito mais importante ser um certo tipo de homem.”
Falou e disse, Amory.
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