Pandora 02/06/2024Eu não fui feliz; somente alegre.
(Nora)
Sensacional! Muito vanguarda.
Meu primeiro contato com Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês que viveu entre 1928 e 1906. Considerado um dos criadores do teatro realista moderno, foi o maior dramaturgo de seu país no século XIX. Vários de seus textos foram e continuam sendo encenados em teatros de todo o mundo e um dos mais famosos é este Uma casa de bonecas (1879), que também ganhou versões para as telas.
A peça casou grande polêmica na época, obrigando Ibsen a escrever um final alternativo, contra a sua vontade, em especial para sua exibição na Alemanha, a fim de evitar que seu texto fosse deturpado “inabilmente” por outra pessoa. Isto porque em Uma casa de bonecas a mulher decide abandonar o marido e os três filhos.
No início da peça Nora passa a imagem de uma dona de casa fútil, esbanjadora e felicíssima na condição de mulher de Torvald, o futuro diretor do Banco de Ações e mãe de crianças adoráveis. Mas quando recebe a visita de uma velha amiga, hoje viúva e à procura de emprego, que com ar de superioridade compara Nora com uma criança e lhe diz que ela é pouco íntima dos percalços e revezes da vida, Nora lhe revela o que fez para salvar a vida do marido: um empréstimo secreto com um agiota. Naquela época, mulheres não podiam fazer transações comerciais sem a anuência do marido. Nora não só teve que economizar em casa, como fazer diversos trabalhos para pagar as prestações sem que Torvald soubesse.
A partir daí vamos acompanhar a vida naquela Casa de Bonecas, o tratamento um tanto infantilizado entre os cônjuges, um marido que com ares de professor tenta moldar o seu objeto de adoração segundo seus valores, enquanto a esposa parece satisfeita em agradá-lo. A pretensa perfeição familiar vai se mostrando caricata conforme uma situação limite se aproxima e Nora vai então se sentindo acuada e à espera de um prodígio, que chama ao mesmo tempo de terrível e uma maravilha.
Também questões sociais e econômicas são abordadas. Kristine, a viúva, precisa trabalhar para viver e Krogstad, o agiota, é um advogado de reputação arruinada que teve que se valer de negócios escusos para pagar as contas e prover a família. Nora se sensibiliza com Kristine, mas não com Krogstad.
Um dos diálogos entre Nora e Krogstad:
- A senhora não se deu conta que cometia uma fraude contra a minha pessoa?
- Tampouco poderia levar em conta isto. Não me importo o mínimo com o senhor.
E mais tarde:
- Passei o dia inteiro pensando na senhora. Um tratante, um usurário, um… bem, alguém como eu também tem um vestígio de bondade no coração, veja a senhora.
- Então dê mostras disto. Pense nos meus pequeninos.
- A senhora e seu marido têm pensado nos meus?
Mas esta mulher que até então vivia em prol de sua família e tinha total confiança nos elos de seu casamento, o verá posto à prova.
Achei o texto muito fluido, muito tranquilo de ler. Ao questionar as convenções do casamento e a posição da mulher na sociedade, houve uma pequena revolução que provocou discussões em toda a Europa. Havia, por um lado, as lutas pela emancipação feminina e, por outro, as censuras à personagem principal que abandona o lar. Mas não sejamos hipócritas: estamos tratando da burguesia, pois obviamente as mulheres de classes baixas sempre tiveram que trabalhar, em quaisquer cenários.
Porém, Ibsen fez a diferença ao trazer estas e outras questões em suas peças, sendo ele mesmo um filho da alta burguesia, tendo seu pai sofrido um revés quando Henrik tinha sete anos, o que tornou sua vida mais difícil desde então. Muitos dos personagens de suas peças são baseados em pessoas de sua família.
Fiquei muito bem impressionada com este primeiro contato e pretendo ler mais obras do autor em breve.
Sobre a sociedade norueguesa:
A Noruega é hoje um dos países mais ricos do mundo e possui um dos maiores índices em igualdade de gênero no mundo. Entre os anos 60 e 70 o país implantou um conceito chamado de State Feminism (Feminismo de Estado), políticas públicas com embasamento feminista criadas ou aprovadas pelo governo, que incorpora ideais feministas no contexto político-social. A Lei de Igualdade de Gênero foi sancionada em 1978. Desde 2017 o país promove uma troca cultural entre representantes de direitos humanos do mundo todo com objetivo de discutir políticas de equidade de gênero. As brasileiras Djamila Ribeiro e Joanna Burigo participaram de alguns desses encontros.
Nas relações trabalhistas, não só homens e mulheres têm os mesmos direitos, como hierarquicamente todos têm obrigação de respeitar-se mutuamente, sendo os chefes os responsáveis pela coordenação e divisão do trabalho, mas imposições arbitrárias não são bem aceitas. Os cidadãos são encorajado a reagir e denunciar abusos de autoridade.
Depender economicamente de outra pessoa não é bem visto, todos devem trabalhar e contribuir para a sociedade. Os imigrantes que se relacionam com noruegueses têm um prazo para estabelecerem-se economicamente, a fim de evitar relações abusivas tanto de um lado como de outro.
Enfim, aquilo que eu sempre prego: cada um deve ser um ser autônomo, responsável por si. Isso se chama liberdade. Pior coisa é ter que ficar numa situação em que não quer estar, por não ter condições econômicas e emocionais de sair.
Aprender os seus direitos é um dos seus deveres.
(Gabi na Noruega)
Notas: Informações sobre Henrik Ibsen, Uma casa de bonecas e a Noruega foram obtidos na Wikipédia, Movimento Mulher 360, Rede Globo, Gabi na Noruega e no ótimo vídeo de Pedro Henrique Müller.
Há inúmeras montagens teatrais e adaptações para o cinema e a TV de Uma casa de bonecas, vou citar apenas algumas.
1. a primeira exibição teatral no Brasil, em 1899, no Teatro Sant’Anna, no Rio de Janeiro e posteriormente, no mesmo ano, no Teatro Politheama, em São Paulo, pela Companhia Dramática Portuguesa de Teatro Moderno de Lucinda Simões e Cristiano de Souza, com Lucília Simões, filha de Lucinda, como Nora. Este papel foi o primeiro êxito da grande atriz portuguesa;
2. episódio de teleteatro do Grande Teatro Tupi, programa idealizado por Sérgio Britto para a TV Tupi. Exibido em 1958, foi dirigido por Wanda Kosmo com Laura Cardoso como Nora;
3. episódio do programa Teatro Cacilda Becker, da TV Bandeirantes, de 1968, dirigido por Walter George Durst, com a própria Cacilda como Nora;
4. a ótima produção da BBC de 1992, disponível no YouTube no canal Kâmera Libre, com legendas em português e excelente trabalho de todos os atores;
5. a adaptação para o teatro dirigida por Clarisse Abujamra que estreou em 2015 com o título de Fantástica Casa de Bonecas, com Helena Ranaldi como Nora. No espetáculo idealizado pela companhia Mabou Mines, de Nova York, as personagens femininas passam os 90 minutos de apresentação de joelhos, precisando se rastejar para conseguir se movimentar durante as cenas, e os personagens masculinos são todos encenados por homens com nanismo.