Coruja 15/08/2020Não me lembro quando foi a primeira vez que ouvi falar em A Rainha do Ignoto, mas foi sempre num tom de elogio e curiosidade por seu pioneirismo no cenário de literatura especulativa cá no Brasil. Assim é que, quando a Wish anunciou que ia lançá-lo numa campanha do Catarse, não tive dúvidas em ir atrás de apoiar. Aí a Andrielle, do Biblioteca Híbrida, anunciou uma leitura coletiva da obra e me empolguei para participar, de forma que o romance de Emília Freitas pulou para a frente da lista de leituras cá no Coruja.
A história é narrada por Edmundo, um jovem bacharel que após desperdiçar sua herança viajando pelo mundo, parte para uma vila no interior cearense, onde lhe restou uma fazenda. Logo ele se insere na sociedade de Passagem das Pedras, com suas pequenas intrigas, bailes e procissões, e também suas lendas, como a da Funesta, uma moça encantada que mora numa gruta próxima da cidade. Após presenciar o espetáculo da moça em sua primeira noite na vila, Edmundo acaba se envolvendo numa trama de mistérios e disfarces, em uma sociedade de mulheres que se intitulam Paladinas do Nevoeiro e que têm por objetivo levar o bem e a justiça aonde quer que se encontrem.
Sendo uma obra de época e regional, há quem possa estranhar algumas palavras e expressões; essa edição resolve parte do problema com notas de rodapé que esclarecem os termos mais obscuros. De resto, é uma questão de costume - quem gosta de ler clássicos não terá dificuldades com o vocabulário, mas quem não está acostumado pode ter um pouco de dificuldade. O desafio, contudo, vale à pena ser enfrentado. A Rainha do Ignoto tem uma prosa poética, singela, repleta de ritmo. Nesse aspecto, pessoalmente, foi algo que me soou familiar: lembrou-me de noites na calçada da casa da minha avó, ouvindo várias pessoas contando "estórias de trancoso", de moças encantadas, fantasmas vingativos, lobisomens e romances malfadados. Freitas tem a mesma cadência e sotaque desses contadores de estórias com quem tive a sorte de crescer.
Há sim, muito de familiar aqui. Um tanto do humor que graceja na primeira parte lembra comédias de costumes como Memórias de um Sargento de Milícias e A Moreninha; a Ilha do Nevoeiro me fez pensar muito em histórias de náufragos e, em especial, n'A Ilha Misteriosa de Jules Verne (Diana me parece ter muito em comum com o Capitão Nemo, inclusive nos nomes assumidos e em sua visão sobre as injustiças do mundo). Da primeira aparição da Rainha pensei também nas baladas de Tennyson e Keats - A Dama de Shalott e outros do ciclo arturiano me parecem uma clara inspiração, com todo o mistério por trás de Avalon; e La Belle Dame sans Merci é um epíteto que bem poderia ser aplicado à Rainha por Edmundo.
Tal familiaridade, contudo, não tira do fato de que, para quando foi escrito, A Rainha do Ignoto estava muito à frente de seu tempo. Feminista, abolicionista, republicana, anticlerical, quiçá até socialista, com uma forte crítica sobre costumes e classes, Emília Freitas passeia por gêneros, foge do romance padrão e deixa uma mensagem sobre o papel que cada um tem no mundo e na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Publicado em 1899, na virada do século, é considerado o primeiro romance de fantasia e ficção científica brasileiro. Pessoalmente, reluto em classificá-lo como fantasia. Há tentativas de explicação para alguns dos fenômenos que ocorrem no enredo: magnetismo, hipnose, a boa e velha manipulação e até mesmo o poder do dinheiro. O conhecimento e a capacidade de ação de Diana/Rainha/Funesta podem ter justificativas racionais, ainda que a falta de respostas definitivas nos façam pensar em algo sobrenatural. Por outro lado, a parte mais mística, com direito a fantasmas e sessões mediúnicas está ligada ao Espiritismo e, se religião é fantasia para alguns, não é para todos.
Se não fantasia, concordo com a classificação de ficção científica. A base principal da história, afinal, é a comunidade secreta construída na Ilha do Nevoeiro, uma perfeita utopia, e como os membros dessa comunidade intervém na sociedade que conhecemos, especialmente no lidar com injustiças e misérias do mundo. Para tanto, as paladinas se espalham, levando dinheiro, remédio, palavras de apoio, libertando escravos, castigando criminosos, tentando fazer o possível mesmo diante das constrições sociais normais que se esperariam da época.
No final das contas, contudo, não há muito interesse em categorizar A Rainha do Ignoto, porque Freitas simplesmente não se restringe para contar sua história. Há elementos de vários gêneros - romance psicológico, comédia de costumes, utopia, aventura - e, dessa forma, desafia rótulos fáceis. Talvez mais próximo seria chamá-lo de uma ficção especulativa e, daí, simplesmente aproveitar a leitura.
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