Inácio 04/10/2018
Fernando Sabino segundo Arsênio
por Arsênio Meira Júnior (publicada inicialmente no blog Caótico, em 2011)
Fernando Sabino já era adorado como cronista quando publicou O encontro marcado (1956), o grande romance sobre as atribulações existenciais de sua geração.
À medida que os anos se passavam e não havia nem sombra de um segundo romance, os críticos se convenceram de que, tendo acertado na veia com O encontro marcado, Sabino temia ser comparado consigo mesmo se voltasse ao gênero.
Levou 23 anos, mas ele finalmente atendeu ao chamado do público e da crítica, com O grande mentecapto, sobre “o doidivanas que (o próprio) continuava sendo”. E, tendo pegado o gosto, rebateu quase em seguida, em 1982, com O menino no espelho, “sobre a criança que gostaria de voltar a ser”.
Tenho que o sucesso de seus romances tende a obscurecer o que pode ter sido a grande contribuição de Fernando Sabino desde fins dos anos 40, quando se tornou um cronista regular de jornais e revistas: ensinar os jornalistas a escrever com clareza, simplicidade e, se possível, charme.
Foram cronistas como ele, Paulo Mendes Campos e, principalmente, Rubem Braga, que começaram a raspar a crosta parnasiana que sufocava o texto de imprensa daquele tempo. Só que, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos nunca foram cobrados pelos romances que nunca produziram.
Em compensação, a Fernando se deve a permanência da produção jornalística destes dois monstros sagrados e também de outros cronistas, dentre os quais Elsie Lessa, Carlinhos de Oliveira e Sérgio Porto.
Fernando Sabino, ao lado de Rubem Braga, fundou duas editoras: A Editora do Autor e a Sabiá, no sorumbático ano de 1967. Durante o breve tempo que existiram, com suas edições sóbrias e caprichadas, elas ajudaram a fixar a crônica como um gênero à altura da melhor ficção brasileira – e, em alguns casos, melhor ainda do que essa ficção.
Muitas crônicas de Fernando são tecnicamente contos, tão ou mais bem realizados que os dos contistas oficiais – o mais popular destes contos de Sabino é o ‘O Homem Nu’ (1960).
Então, por que são chamados de crônicas? Porque crônica é tudo aquilo que o cronista chama de crônica, embora Fernando Sabino nunca se tenha dito cronista. Os outros é que diziam e ainda dizem.
Seus contos são confundidos com crônicas porque ele os publicou primeiro em jornais e revistas. O curioso é que, depois, ao saírem em livros, continuaram a soar como “crônicas”, não como ficção.
A explicação pode estar no fato de que, com seu enorme à-vontade ao escrever, Fernando contava um história como se ela tivesse acabado de acontecer com ele, livre de qualquer “verniz literário”.
Esse à-vontade, evidentemente, é um truque – porque só ele poderia saber o quanto lhe custava escrever simples.
Mas que as histórias contadas por Fernando Sabino lhe aconteceram, ah, não tenham dúvidas. Mesmo que ele tenha precisado inventá-las. Sua própria biografia parece história de Fernando Sabino, e o fato dele ter nascido no Dia da Criança já devia ser indício de peraltice.
Uma das primeiras coisas que aprendeu foi fazer fogo com palito de fósforo; antes, bem antes, ele já consumia histórias infantis. Após esse início, típico de um incendiário nerd às avessas, recém promovido do jardim da infância, Fernando conheceu Hélio Pellegrino, o que lhe seria útil e fundamental para o resto da vida.
Aos 16 anos, depois de devorar tudo o que lhe caía à mão (de balas de coco a livros de Giovanni Papini), Fernando Sabino escreveu seus primeiros contos, conquistou alguns prêmios literários em concursos juvenis, e en passant, tornou-se recordista em natação – seu tempo nos 400 metros nado de costas foi considerado digno de um Michael Phelps, apesar da prova ter sido banida das competições nacionais (por um breve período, é claro.)
Em 1940, aos 16 anos, o destino o colocou frente a frente com Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos e, a partir daí, juntamente com Hélio Pellegrino, os quatro ficaram inseparáveis. Não apenas pela profunda amizade que os uniu até a morte, mas porque, quando um dos quatro estava ausente, os outros três aproveitavam para descer o sarrafo no indefeso faltoso.
Aos 18, Fernando já tocava bateria de jazz e se correspondia com o grande Mário de Andrade, mais isso não chega a ser propriamente uma vantagem: suspeita-se de troca de cartas entre Mário com vaga-lumes e com os membros da Igreja Ortodoxa Russa.
Aos 21 anos, tendo publicado um livro de contos e com uma novela no embornal, Fernando ficara amigo de todos os escritores cariocas, pelos menos daqueles que tinham visitado Belo Horizonte, dentre os quais o ainda engravatado Vinicius de Moraes.
No ano de 1944, Fernando radicou-se, definitivamente, no Rio de Janeiro. Otto Lara Resende e Paulinho Mendes Campos o seguiram correndo e Hélio, corajosamente, deixou-se ficar – só iria nove anos depois.
Ele foi o escritor de Gente I e Gente II (talvez os melhores livros de perfis já publicados no Brasil), foi o cronista que brincou de dar nós na semântica, embarcando em hilariantes confusões com as palavras.
Suas histórias são dignas de leitura e releitura. ‘A paz na rua Canning’,em ‘A mulher do vizinho’, sobre um barulhento clube de bridge, instalado na vizinhança, para o horror dos transeuntes; ‘O mistério daquela noite’, em ‘O gato sou eu’, sobre um rapaz cuja alma se separava do corpo; ‘Garotas de Ipanema’ em ‘A volta por cima’,sobre um garoto que estala um beijo numa respeitável bunda de fio-dental.
O seu romance O encontro marcado é o mais vívido depoimento da geração que amadureceu durante a Segunda Guerra Mundial.
Portanto, justíssimo perdoá-lo pelo tragicômico e pavoroso livro de sua lavra, intitulado Zélia, uma Paixão.