RicardoKelmer 24/07/2009
O ENCONTRÃO MARCADO
O ENCONTRÃO MARCADO
Ricardo Kelmer - blogdokelmer.wordpress.com
Há livros tão especiais que deviam fazer parte do álbum de fotos da pessoa, você não acha? Eles são decisivos, apontam caminhos, mudam o rumo da vida. Você deve ter livros assim. Difícil eleger o mais importante, né?, há sempre o risco de ser injusto. No meu caso, já passei dos quarenta, acho que minha opinião não seria suspeita. O livro da minha vida se chama O Encontro Marcado. Seu autor: Fernando Sabino.
Para falar dele preciso antes voltar à infância, eu na biblioteca do colégio Santo Inácio encantado com os livrinhos infantis, o melhor brinquedo que poderiam inventar. Mais tarde descobri aquela coleção Para Gostar de Ler, crônicas de vários autores brasileiros. Que delícia! Ainda agora sinto na alma o gosto de susto e descoberta que vinha daqueles textos, horizontes que se abrem, possibilidades desveladas. Hoje eu sei: foi naquele momento, aos dez anos, que as sereias da literatura me fisgaram para sempre e eu saltei no mar. A minha procura encontrava um sentido. Foi lendo aquelas crônicas que decidi ser escritor.
Sabino era meu predileto. Suas crônicas ilustraram toda a minha adolescência. O humor, a ternura, o modo econômico, o olhar ao mesmo tempo leve e agudo pousado sobre as pequenas questões do dia-a-dia… Seu estilo me fascinava. Eu já escrevia historinhas e os professores gostavam de minhas redações. Eu ainda não sabia mas já procurava. Porém quando tentava crônicas me batia uma terrível sensação de impotência. Lembrava de Sabino e aí pesava sobre mim sua sombra gigantesca. Não, eu jamais conseguiria escrever como ele, melhor nem tentar. Maldito! Como podia incentivar e ao mesmo tempo destruir um jovem candidato a escritor?
Meu pai me presenteava com os livros do mineiro, que eu lia com renovado fascínio. Adolescente, espinha no rosto, eu sonhava ser escritor. Mas era algo difícil de visualizar… Que caminhos percorrer, a quem pedir ajuda? Como ser cronista se as melhores crônicas já estavam escritas?
Então deu-se o encontrão. Dezoito anos, dividido entre o velho sonho literário e as dez mil coisas do mundo, peguei na biblioteca da faculdade um romance chamado O Encontro Marcado. Putz, que pedrada! Comecei a ler de manhã, não almocei, entrei pela tarde, faltei à aula. A noite veio e eu lá extasiado, sem conseguir largar o livro. Foi um clarão de luz que iluminou de vez o caminho. Eu fechei o livro, fui até a janela e olhei pro mundo lá fora. E disse baixinho, com a leveza que só as grandes revelações permitem: tenho que ser escritor.
Aquele livro em minhas mãos dizia tudo. Eu estava ali! Eu era Eduardo Marciano brincando no quintal, querendo ser atleta, descobrindo os livros. Eu era Eduardo puxando angústia, porres homéricos de poesia, promessas de amizade. Eu era aquilo tudo, otimismo, amargura, ironia, paixão, solidão. Eu, mais um marinheiro ensadecido a quem as formosas sereias das letras olharam nos olhos.
A criança já havia decidido. Mas agora o jovem confirmava. Eu não tinha saída: simplesmente não poderia ser outra coisa na vida senão escritor. Eu trombara com meu próprio destino, um esbarrão que me encheu dessa estranha liberdade de quem abraça a própria sina. Sabia que não seria fácil e que, como a maioria, eu provavelmente desistiria pelo caminho. Sabia também que deveria beber em muitos estilos para encontrar o meu próprio. E entendi que não devia temer as grandes sombras.
O tempo passou. Vão-se mais de vinte anos. Combinei com amigos encontros solenes aos quais não fomos, roubei esqueletos, fiz de muitas quedas um passo de dança, fui interrompido antes de terminar. Reli O Encontro Marcado outras vezes. Certo dia comprei um e deixei sobre o banco da praça, com dedicatória ao desconhecido que o encontrasse. Pois é, o tempo passou. E o destino se cumpriu, tornei-me escritor. Culpa daquele livro diabólico.
Há encontros que marcam para a vida inteira. O meu foi aquele. E é ao romance de Sabino que agradeço. Pelos céus e infernos que passei e passarei em nome das sereias da literatura. Por ter me ajudado a fazer do medo uma ponte. Por ter feito da minha procura um encontro.
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Ricardo Kelmer 2004
Este e outros textos você encontra no livro "Blues da Vida Crônica"