midnightrainz_ 16/11/2024
“Por que a liberdade é como o sol: o bem maior do mundo”
Tive meu primeiro contato com Jorge Amado, um dos maiores escritores da literatura brasileira de todos os tempos, gostando ou não de sua obra, com a novela “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, em 2019. Lembro-me de ter achado esse um livro muito divertido, apesar de não muito marcante, e me contentei com ele durante muito tempo. Cheguei, nessa mesma época, a começar a ler “Capitães da Areia”, mas não dei continuidade - não lembro exatamente o motivo. Até que voltei novamente meus olhos a ele esse ano, por conta das aulas de literatura. E, como fazia tempo que não lia nada da fase militante do nosso modernismo (a minha favorita, diga-se de passagem), pensei: “Por que não juntar o útil ao agradável?”. Pois bem, não me arrependo nem um pouco dessa decisão.
A temática principal do livro já é apresentada logo na primeira parte, “Cartas à Redação”. Nela, temos uma série de pseudo-reportagens, que dão um caráter verossímil ao livro, tratando do grupo de crianças “ladronas” que dá título ao livro. Logo no começo, já percebemos uma certa manipulação da mídia, que deveria ser supostamente imparcial, para demonizar o grupo, ignorando as verdadeiras causas dos problemas relacionados à criminalidade e, principalmente, o fato de estarem lidando com *crianças*. Ainda nessa parte, temos uma crítica ao sistema punitivista, o tratamento dado aos jovens delinquentes dentro dos reformatórios não estariam sendo eficazes para reeducá-los e que as fugas e a reincidência criminal seriam consequências diretas desse tratamento - algo pateticamente ignorado pelo jornal, que só está interessado em sensacionalismo barato e autopromoção. Esse aspecto do livro, o que mais me agradou na leitura, teria passado completamente batido para o Rafael de quinze anos, que não tinha a maturidade e a visão de mundo que tenho atualmente. Vi algumas, mais do que gostaria, pessoas se incomodando com o “viés ideológico e panfletário” dessa obra, e sobre isso gostaria de fazer um comentário: NÃO EXISTE arte impessoal ou apolítica; este livro possui um claro propósito de denúncia de realidade - se isso te incomoda, é porque a obra cumpriu com seu objetivo.
Assim, o leitor se depara logo no começo com a essência de “Capitães da Areia”: um livro extremamente ousado que vai expor feridas que, infelizmente, a sociedade ainda não curou, mesmo depois de quase 90 anos. Além da crítica à desigualdade social, ao sistema punitivista, à negligência do estado, à corrupção da igreja, entre tantas outras; temos em mãos um livro que, em pleno estado novo, falou abertamente sobre homossexualidade, tema que até hoje é tratado como um bicho de sete cabeças, como se gostar de alguém do mesmo gênero fosse a coisa mais absurda do universo, e religiões de matriz africana - de uma maneira não demonizada. Mas, acima de tudo, Jorge Amado faz aqui uma enorme crítica ao capitalismo e uma grande propaganda comunista, que se dá principalmente na figura de João de Adão, um amigo do pai de Pedro Bala que trabalha nas docas e milita a favor da classe trabalhadora. Segundo ele, “aquelas crianças” estão vivendo naquelas condições por conta “dos ricos” e que eles só sairiam delas através de uma revolução. Em outras palavras: “A burguesia fede, / a burguesia quer ficar rica. / Enquanto houver burguesia / não vai haver poesia”.
Difícil não simpatizar com um grupo que vive em condições tão precárias de existência: crianças de 8 a 16 anos pobres, órfãs e analfabetas, que vivem em um trapiche abandonado sob companhia de ratos, que muitas vezes dormem de barriga vazia, um estilo de vida nem um pouco adequado para uma criança em fase de desenvolvimento. E elas possuem consciência de sua própria dor, tentam se apegar a qualquer coisa que consiga torná-las minimamente humanas - como é o caso de Professor com os livros, ou de Pirulito com a religião. Ainda temos cenas como a do carrossel, uma das mais belas do livro, diga-se de passagem, que nos fazem questão de relembrar que o lugar delas não é na rua, e sim aproveitando sua infância. Apesar de serem crianças que vivem do furto, existe um código de ética dentro do grupo - algo que eu particularmente achei bem interessante. Por exemplo: tudo que você rouba deve ser mostrado aos outros membros do grupo, para eles terem conhecimento, e é proibido roubar coisas uns dos outros. Isso coloca eles como uma espécie de Robin Hood brasileiro: roubam dos ricos para dar aos pobres, os pobres sendo eles próprios. Os próprios roubos em si não são cometidos contra trabalhadores, somente contra “os ricos”. Mesmo representando essa oposição à tirania do estado e vivendo sua liberdade de maneira intensa, as condições de vida desses garotos é extremamente preocupante e deve ser urgentemente discutida.
Algo que não posso deixar de comentar: existe certo machismo presente na obra, perceptível em cenas como a que pedro bala vai proibir relações homoafetivas no grupo (focando especificamente nos passivos), pois isso os colocaria em posição “inferior a uma mulher”; ou quando dora chega ao grupo e é recebida com hostilidade, e só será bem aceita quando passa a desempenhar os papeis sociais esperados para uma mulher daquela época: mãe e esposa. Fora a sexualização forte e explícita das personagens femininas, principalmente as mulheres negras. Não sei se o autor fez isso em um tom de crítica ou não, só sei que foi algo que me incomodou um pouco durante a leitura - e pode incomodar outras pessoas, por isso deixo o aviso.
Finalizo esse texto dizendo que, além de uma forte crítica política e uma denúncia social, “Capitães da Areia” é um canto de amor à bahia, uma ode de exaltação à liberdade.