mpettrus 13/12/2022
?O Romance Periférico Azevediano?
??O Cortiço? é um romance complexo e abrangente, que traz reflexões sobre questões que envolvem a sociedade brasileira, em meio a tensões e contradições que fizeram parte de seu passado e que se perlongam na nossa contemporaneidade. Interessante notar que a obra de Aluísio Azevedo traz recortes sociais que reproduzem flagrantes de realidades afetivas experimentados pelos personagens e também o fato de ser um romance que possibilita múltiplas abordagens de uma realidade palpável.
? O romance é permeado de antagonismos como: as diferenças sociais, uma habitação coletiva polarizada pela miséria, violência, alcoolismo e, ao lado, um sobrado que retrata uma classe social elevada, a construção ambiental das relações, humanas e desumanas, que caracterizam o capitalismo selvagem e elitista, que rege e configura o enredo, até mesmo diante do explorador, que se submete a mudanças, pressionado pelas relações de competição e concorrência.
? A linguagem aqui empregada é coloquial, simples e direta para descrever vícios e mazelas humanas, usando-se expressões vulgares. Temas do cotidiano urbano como crimes, misérias e intrigas são recorrentes no enredo da história. O narrador é onisciente, então fiquei com a percepção de que ele é um observador estudando os desvios de comportamento, marcada pela influência de ?raça? e ?meio? do cortiço sobre seus moradores, para analisar os fenômenos ali concentrados com imparcialidade extraindo conclusões inquestionáveis.
? O cortiço do português João Romão é o que eu chamo de ?Protagonista?, o que move toda história, todas as vidas, todas as tragédias. Ele é um organismo vivo, que nasce com algumas tábuas roubadas, e morre num incêndio. Nesse meio tempo, João Romão enriquece explorando os miseráveis, que moram ali e compram em sua venda, e também a negra Bertoleza, sua companheira, que passa a sonhar com a ascensão social. Após uma reviravolta no decorrer da história, João casa-se com a filha de Miranda, um comerciante português, que se faz Barão.
? O livro ainda apresenta outras tramas, onde se desenvolve uma discussão acerca da constituição brasileira, através da miscigenação racial e cultural. Ao longo do romance, eivado dos preconceitos da época, vão aparecendo os diferentes modos de adaptação do português no Brasil, além da luta dos negros e, especialmente, dos mestiços pela sobrevivência. Desse convívio de tipos vai se fazendo o romance, como ia se fazendo a nação.
? Esse romance azevediano despertou-me a curiosidade, a imaginação, proporcionando novos olhares, novas perspectivas e possibilidades de compreensão dos fatos, abrindo caminhos para novos significados contribuindo para o arcabouço de meu conhecimento avançar em outras possibilidades de compreensão mais abrangente do mundo que eu não tivera quando o li pela primeira vez, ainda adolescente, nos tempos do Ensino Médio. Releitura essa que deu muito certo para mim enquanto leitor, pois pude perceber que a obra envelheceu muito bem. Continua atualíssima.
? Outro ponto necessário a ser comentado é sobre a habilidade do autor na narrativa minuciosa dos usos e costumes do comportamento dos moradores do cortiço. Tudo é muito bem construído, bem orquestrado, e não necessariamente em longos parágrafos, mas curtos e breves, e estritamente objetivos falando dos cômodos pequenos, insalubres e sem ventilação, a falta de observância às regras higiênicas dos moradores devido à precariedade das instalações sanitárias. O episódio da ?febre amarela?, talvez, tenha sido a maneira que o autor encontrou para criticar a situação de miserabilidade e pobreza das populações marginalizadas pelo Império.
? A narrativa desse romance periférico azevediano traz consigo os holofotes de uma história centrada no povão com cenários de favelas do final do século XIX, destoando cabalmente dos cenários burgueses muito propagados pela Escola do Romantismo, onde a ?assepsia? fazia-se muito presente. Para mim, essa decisão narrativa do autor de sair do ?centro? e deslocar-se para a ?periferia? torna ainda mais emblemático esse livro permeado de dissimulação, mentiras, desejos de ascensão social e traições.
Mas vale lembrar que embora o cortiço azevediano não seja central, e sim periférico, a noção de periferia representada na narrativa não tem uma amplitude espacial muito grande, visto que se resume ao entorno dos espaços físicos do cortiço de João Romão. Mas é periférico em sua totalidade por que têm em suas personagens todas elas representações de tipos da periferia de uma sociedade extremamente desigual, abandonada e caótica. E que a literatura do naturalismo abraçou sem reservas.