jota 27/09/2020MUITO BOM (retrato da decadência de uma cidade por um de seus maiores artistas)Um país que arde em chamas de proporções amazônicas, que desde 2018 tem como maiores referências políticas Lula e Bolsonaro, nomes que me causam asco escrever, não pode mesmo dar muita esperança para os brasileiros decentes, somente decepção, desânimo, canseira, insanidade. O futuro de nossa gente parece cada vez mais próximo do passado, dos anos de 1959 (socialismo em Cuba) ou 1964 (militarismo aqui), e bastante distante de melhores dias, que alguns mortos nos prometeram há décadas e viraram cinzas. São pensamentos como esses – e outros igualmente pessimistas – que o livro mais recente de Chico Buarque pode despertar nos leitores. Mas também tem certo humor nessas páginas e a gente vai levando, vai lendo...
Fazia tempo que não lia nada do grande artista carioca, contumaz defensor de teses e políticos petistas, embora sempre estivesse ouvindo suas belas canções interpretadas por ele mesmo ou por outros artistas. Fiquei agradavelmente surpreso por ter apreciado bastante a mais recente obra literária de Chico: em Essa Gente ele consegue estabelecer melhor comunicação com o leitor, e faz isso de maneira mais rápida, coisa que não ocorria com tanta facilidade em seus livros mais antigos, como Benjamim e Estorvo, os últimos dele que li. Essa Gente me levou a pensar que talvez seja possível mais à frente que eu leia dois de seus livros publicados antes desse, Leite Derramado e Meu Irmão Alemão.
Durante a leitura, por diversas vezes me veio à memória o livro de Geovani Martins, O Sol na Cabeça, lançado em 2018. Ambos os autores conseguiram retratar de modo apropriado, cada um a sua maneira – Geovani através de seus contos, Chico através do romance epistolar, evidentemente com mais propriedade e talento –, a decadência do Rio de Janeiro, sua favelização social e moral. Para a qual contribuíram principalmente políticos e empresários corruptos, mas não apenas eles, como se sabe. Pelas notícias mais recentes esse processo continua: todo dia tem escândalo, denúncia de roubalheira, desvios, rachadinhas etc. Isso sem falar na ousadia dos bandidos dos morros, que volta e meia aterrorizam os cariocas. A cidade que deu ao Brasil e ao mundo as fabulosas canções da Bossa Nova, alguns filmes magistrais do Cinema Novo, a ideia de um país belo, alegre, feliz, faz tempo que aparece no noticiário quase sempre associada à corrupção, à violência e bandidagem, às tragédias naturais, às balas perdidas que matam inocentes e outros fatos assemelhados.
Tudo isso faz parte da trama do livro: o Rio, o Brasil já estavam bem doentes antes de a pandemia do coronavírus adoecê-los ainda mais, antes que governador e prefeito passassem a ser investigados, mais lama a cobrir a cidade já enlameada há anos por sucessivos governos estaduais corruptos. Em Essa Gente personagem e autor, Manuel Duarte e Chico Buarque, nos transportam para dentro da cabeça tumultuada de um escritor em crise, decadente, ao mesmo tempo em que nos atiram no caos que tumultua a antiga Cidade Maravilhosa, de tantas glórias passadas. Tudo isso parece muito trágico e é, mas Chico nos mostra que estamos diante de algo muito maior, uma tragicomédia carioca. Ou brasileira, pensando melhor. E que, para infelicidade geral da nação, parece não ter fim.
Lido entre 20 e 25/09/2020.