Luigi.Schinzari 11/12/2020
Sobre Um Conto de Duas Cidades de Charles Dickens:
Poucos autores souberam dominar seus leitores como o mestre inglês Charles Dickens (1812?1870). Cada livro de sua vasta obra cativa facilmente o público logo nas primeiras páginas por conta de uma escrita primorosamente fluída, uma gama de personagens interessantes e ocorrências que perpetuam as histórias e persuadem o interlocutor a se manter preso em cada página, cada parágrafo, cada frase e cada palavra nelas escritas até não chegar em seu fim. Em Um Conto de Duas Cidades (A Tale of Two Cities), romance publicado em 1859 nas páginas da revista All The Year Round (fundada e editada pelo próprio autor), Dickens, já em uma fase madura de sua escrita, absorve todos os elementos desenvolvidos ao longo de sua carreira e brinda o leitor com um livro emocionante e denso focado em paralelos entre personagens, conflitos e, principalmente, duas cidades, como diz o título: Paris e Londres.
Traçada em um período que vai de 1775 até 1793, Dickens nos apresenta um núcleo diverso espalhado entre as duas cidades e todo interligado por conexões apresentadas ao longo do trama (das mais sutis à coincidências facilitadoras), dividindo sua obra em três blocos bem delimitados: De Volta à Vida, em que Alexandre Manette, médico francês que a família acreditava estar morto mas que, na realidade, havia sido preso injustamente na Bastilha, é reencontrado, em Paris, por sua filha e única parente viva Lucie junto a um funcionário de um banco com quem tinha conhecimento em sua vida anterior a prisão, Jarvis Lorry, velho metódico e, como ele mesmo diz, um solteirão convicto; O Fio Dourado, em que anos já se passaram desse reencontro e, em Londres, o médico vive bem com sua filha Lucie enquanto esta é cotejada por vários jovens e acaba se casando com Charles Darnay, jovem francês recém-absolvido em um processo por conspiração contra a Inglaterra por ter uma história turva com a França; e, por fim, O Rastro de Uma Tempestade, em que os fatos e personagens antes apresentados se chocam em pleno período do Terror pós-Revolução de 1789.
Com este curto e básico esboço -- longe da dimensão da história e da quantidade de personagens exploradas por Dickens -- da história, o autor, munido de dezenas de situações que colocará em suas quase quinhentas páginas, explora as relações humanas, das mais belas às mais bestiais, expondo espelhos ao longo de toda a obra, sempre refletindo de situação para situação, de personagem para personagem, de sentimentos para sentimentos; não à toa situa sua obra tanto em Paris quanto Londres, enquanto uma aponta as injustiças e perversidades que a outra possui em nome de causas como a República ou a Coroa.
Imbuído de uma escrita madura e já celebrada em seu tempo, Dickens conhece muito bem a história que quer contar e as ferramentas que irá usar como autor; e, sem mistério para ninguém, o escritor consegue enrolar a história como um grande cordão no pescoço do leitor e que, quanto mais a lê, mais se enforca no gozo do livro: é inevitável o leitor se asfixiar e desejar cada vez mais ler de forma incontinenti os próximos capítulos da obra. Mérito do autor, experiente como era, que não poupa esforços para, muitas vezes, criar ligações que fogem a lógica por sua coincidência descabida, mas que, conhecendo seu leitor, sabe que pouco importaria criar formas rocambolescas de se chegar ao fim desejado tanto por ele quanto para seu público; não são deméritos essas facilitações na mão de um autor como Dickens, apenas recursos muito bem utilizados para forrar cada canto de seu livro com as situações e fins planejados sem jamais cair na modorra.
Dickens, conhecido por suas descrições poéticas de lugares e momentos sentidos pelas personagens, eleva sua característica já conhecida ao acrescentar uma característica que só colheria frutos em seu futuro com nomes como Zola (um capítulo de revolta em específico é inegável dissociar de Germinal, por exemplo) e Maupassant ao retratar o caráter bestial da humanidade contagiada pela situação. São muitos os momentos em que a massa francesa, principalmente, fatigada dos abusos da coroa e de partes de sua aristocracia, expele todo o ódio cultivado ao longo dos anos de dor. Dickens centra essa sua nova façanha, a do narrador de façanhas animalescas, no casal DeFarge -- donos da estalagem em que o doutor Manette é encontrado por Lucie e Lorry logo no começo da obra enquanto faz sapatos de modo cego e irracional --, símbolo das jacqueries medievais (revoltas camponesas) no contexto da França pré e pós?Revolução, revolucionários extremados e rancorosos que servem como principais antagonistas, junto a seus seguidores e convivas, da obra.
Assim como todo bom autor, Dickens, situando sua obra em um período em que as paixões ideológicas facilmente seriam tomadas pelo lado A ou B para fazer uma observação simplória sobre causas e consequências a seu gosto, aborda -- novamente se utilizando da ferramenta dos espelhos -- os atos monárquicos sendo tão indevidos e inconsequentes quanto a cega paixão dos revolucionários que levaram sua revolta a níveis de mais puro autoritarismo, indo de encontro ao mote básico da Igualdade, Fraternidade e Liberdade, sendo ou Morte um quarto elemento novo assim como ...mas alguns são mais que outros é para Todos os animais são iguaisna obra Revolução dos Bichos de George Orwell.
Um Conto de Duas Cidades é, assim como toda a obra de Dickens, um primor de técnica narrativa alinhada ao tom mais novelesco (no sentido audiovisual e não literário da palavra) e que deixa o leitor desejando a cada pausa feita na leitura poder logo retornar a ela para prosseguir a história daquelas personagens cativantes -- algumas, donas de honra; outras, de ódio; tantas de amor, outras tantas pela apatia. Sempre há um contraponto a cada elemento de nosso mundo, e Dickens, escritor hábil como foi, pincela sua obra com essa e tantas outras características do humano e sua vida por vezes feliz, por vezes trágica. Talvez nunca tenha havido alguém que retratasse o homem tão fidedignamente quanto ele, e por isso a leitura de Dickens é e sempre será enriquecedora, e Um Conto de Duas Cidades é mais um belo exemplo disso.