Pequeno país nasceu de um desafio. A editora Catherine Nabokov, fascinada pelo talento narrativo do rapper Gaël Faye, que conheceu por meio de seu filho, sugeriu que ele escrevesse um livro. Foi assim que Faye estreou na literatura com um romance sólido e cativante. Nada no livro sugere inexperiência do autor, que tinha 34 anos em agosto de 2016, quando Pequeno país foi lançado na França.
Naquele mesmo ano, que encerrou com mais de 700 mil exemplares vendidos, o livro ganhou o Goncourt des Lycéens, versão do principal prêmio literário do país, escolhido por um júri formado por 2 mil estudantes do ensino médio. O romance tem tradução de Marília Garcia e posfácio do escritor angolano Kalaf Epalanga, com quem Faye dividiu a mesa na Flip, em 2019.
O “pequeno país” é o Burundi, na região central da África, onde nasceram Faye e seu personagem (e narrador), Gaby, um garoto que passa dos 10 aos 11 anos durante a narrativa. A história tem fortes traços autobiográficos, e o livro não seria tão comovente sem o suporte da vivência do autor. Gaby é filho de um casal de classe média morador de Bujumbura, antiga capital do Burundi, sendo a mãe negra e nascida em Ruanda (país vizinho ao Burundi) e o pai, branco e francês.
Com a pele cor de caramelo, o garoto é, socialmente e até em casa, considerado branco. No início, a mãe viaja a Ruanda para procurar seus parentes depois de notícias de que a etnia tútsi, a que ela pertence, está sendo alvo de violência e assassinato. O romance deixa claro que o conceito e a configuração de etnias nos dois países se baseiam em fundamentos questionáveis que foram convenientes à dominação imperialista europeia de séculos.
Pequeno país é ambientado em 1993, no momento da eclosão de uma guerra civil entre os tútsis e os hútus, conflito que, em Ruanda, culminou no genocídio de quase 1 milhão de pessoas. Mais do que um retrato de vidas dilaceradas pela guerra, trata-se de um romance de formação. O texto poético de Faye evoca uma infância idílica que aos poucos vai se transformando numa sequência de situações desafiadoras. Um exemplo é a tentativa de recuperar uma bicicleta roubada, acontecimento banal que encerra questões sociais e familiares complexas.
Além dos perigos e tragédias do ambiente de confronto armado, Gaby se vê diante da corrosão da própria família e do despertar amoroso desencadeado pelo diálogo por carta com uma garota francesa que não conhece pessoalmente. Ao mesmo tempo, o personagem vive, na companhia de um grupo de amigos, as delícias de uma infância passada em contato com uma natureza exuberante – e às vezes perigosa – à beira do imenso lago Tanganica.
Eles roubam mangas e fumam cigarros escondidos, descem um rio numa jangada feita de tronco de bananeira e brincam de patrulhar as ruas do bairro em que moram, até que a guerra os leva para atividades mais perigosas. Entre os acontecimentos que os meninos presenciam está a primeira eleição direta para presidente no Burundi e, em poucos meses, o assassinato do vencedor, que foi o estopim da guerra.
Faye também nasceu em Bujumbura e seus pais eram como os de Gaby: a mãe ruandesa e o pai francês. Escreveu seu primeiro poema aos 13 anos, e o tema era o medo – sentimento que o escritor rememora como predominante nessa fase de sua vida. No mesmo ano, ele se mudou para a França, fugindo da guerra, para ir viver com a mãe. Até hoje Faye vive entre Versalhes, na região de Paris, e Kigali, a capital do Burundi, país que ele preferia nunca ter deixado.
A saudade do “pequeno país” é um tema recorrente de suas canções. Foi também um dos assuntos de sua palestra na Flip de 2019, onde recebeu demorados aplausos da plateia. Ao público do evento, ele disse: “Não cresci numa casa com uma grande biblioteca, mas tenho uma urgência de falar e não espero permissão dos outros. Foi isso que o hip-hop me ensinou”. Outra de suas canções é a Balade brésilienne, num ritmo que remete ao samba.
Ficção / Literatura Estrangeira / Romance