“Eu sou isto: esta terra, e a tenho no sangue. Veja minha cor: parece que a terra soltou tinta em mim e em você também. Esse país é o quinhão dos homens pretos, e todas as vezes que tentaram tirá-lo de nós podamos a injustiça a golpes de facão.” O país é o Haiti e quem fala é Manuel, o protagonista de Senhores do orvalho, de Jacques Roumain, traduzido por Monica Stahel, quase sete décadas depois de sua primeira e única edição no Brasil.
Senhores do orvalho foi lançado originalmente em 1944, pouco depois da morte do autor, e é considerado o romance fundador da literatura haitiana moderna, tematizando os elementos fundamentais do cotidiano do povo negro em sua luta por sobrevivência. Estão presentes a agricultura de subsistência, a religião vodu, a cultura africana reprimida pela elite mestiça e, sobretudo, a natureza violentamente devastada, que se eleva da trama com tanta força e complexidade quanto os personagens. Com estrutura aparentada à fábula e aos mitos fundadores, é também uma obra engajada, marxista, às vezes quase programática, sobre as possibilidades de emancipação de uma maioria oprimida pela via do trabalho.
O protagonista, Manuel, é um lavrador que volta a seu povoado, Fonds-Rouge, depois de quinze anos nas plantações de cana-de-açúcar em Cuba, período em que conheceu a auto-organização dos trabalhadores e participou de uma greve. Ao voltar para a casa dos pais, encontra-os vivendo privações severas num ambiente castigado pela seca. Manuel é recebido com uma cerimônia vodu de boas-vindas em que ocorre uma briga de loás (divindades do vodu), sinalizando a iminência de um conflito. O herói logo perceberá que a vizinhança é marcada por uma divisão entre grupos hostis, originada por uma antiga disputa de terras de família, que acabou em duas mortes.
O primeiro desafio de Manuel será procurar uma nascente de água para criar um sistema de irrigação que volte a tornar férteis as terras de Fonds-Rouge. O segundo é vencer a resignação e a desconfiança mútua no interior da comunidade e unir seus integrantes em torno do trabalho agrícola, requisitos para fortalecê-los frente aos inimigos que representam as elites mestiças: violentos guardas rurais e comerciantes exploradores. A possibilidade de cooperação é simbolizada pelo modo tradicional de organização coletiva do trabalho, pontuado por música e dança – o coumbite. Os conflitos se aprofundam quando Manuel se apaixona por Annaïse, do ramo rival da família, desencadeando um romance ao estilo Romeu e Julieta. No final, Manuel cumpre sua vocação de líder, embora de modo inesperado.
A literatura de Roumain é reconhecida por ter introduzido uma voz haitiana própria, ao evocar os ritmos e sonoridades da língua crioula – uma elaboração buscada pelos intelectuais autointitulados indigenistas. Como observa no posfácio a pesquisadora Eurídice Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, “os dois elementos culturais mais fortemente rejeitados pelas classes letradas eram o vodu, considerado uma superstição a ser eliminada, e a língua crioula, considerado um patois, um dialeto que os falantes praticam mas do qual se envergonham”. Foi no vodu e no crioulo que os indigenistas encontraram a linguagem e a cosmologia particulares da literatura haitiana, que já nasceu moderna ao recusar as formas oficiais de comunicação.
Ficção / Literatura Estrangeira / Romance