Luigi - Acrópole Revisitada 09/10/2023
Durante os últimos anos, o nome de Conceição Evaristo tomou grandes proporções no jogo de forças do campo literário brasileiro. Apesar de ter publicado vários livros na década passada, até pouco tempo atrás era desconhecida por muitos. Nessa onda de descoberta, Conceição Evaristo teve obras reeditadas, publicou novos livros, virou um dos grandes fenômenos das feiras e festas literárias, bem como começou a arrastar uma multidão atrás de si.
Além de muito importante, pelo espaço em que ela ocupa por conta da representatividade, tudo isso é muito justo por conta da qualidade de seus textos e o poder de mimetismo de inúmeras realidades brasileiras que seu texto possui. Justo também por finalmente ser conhecida em seu próprio país depois de ser lida e estudada fora dele.
Durante meu doutorado, conheci a obra de Conceição Evaristo por conta de uma professora holandesa que nos ministrou uma disciplina concentrada durante uma semana. Lembro de ter me perguntado: como alguém de fora do país conhece essa escritora e eu não ? Sobretudo com essa qualidade. Gostei na primeira leitura. Em breve sua obra começaria a ter mais força dentro do mercado nacional.
Ao ler recentemente Canção para ninar menino grande, entretanto, não tive o mesmo prazer que tive quando descobri a obra da autora, nem quando li outros livros como Ponciá Vicêncio (2003), Olhos d’água (2014) e Poemas da recordação e outros movimentos (2017), que são muito bons. O livro lançado em 2022 pela Pallas é uma história mal desenvolvida que não empolga e não convence.
O livro conta a história de Fio Jasmin, um homem bonito que conquista praticamente todas as mulheres que conhece ao longo de sua vida adulta. Apesar de casado e ter vários filhos com sua esposa Pérola Maria, o protagonista usa seu trabalho como assistente de maquinista de trem para ter inúmeras relações extraconjugais pelas cidades pelas quais passa e onde muitas vezes pernoita por vários dias antes de regressar ao caminho de casa.
Entretanto, sua história não é contada por ele mesmo e sim por uma narradora que apresenta as mulheres que passaram pela vida do protagonista e se relacionaram de algum modo com ele. Esse é um dos pontos positivos do livro, porque temos acessado à perspectiva de inúmeras pessoas e durante vários momentos da vida de Fio Jasmin, como se cada uma fosse compondo um quadro e no final tivéssemos um mosaico sobre quem realmente é esse personagem.
Entretanto, o excesso pode penalizar. Entendo que talvez o intuito da autora fosse trazer uma espécie de sororidade entre essas mulheres que se apaixonaram e foram abandonadas por Fio Jasmin, mas acredito que o efeito saia contrário. Lendo, não tive a sensação de união por histórias semelhantes, mas sim uma repetição de personagens, todas elas desenvolvidas mais ou menos do mesmo jeito sem maiores profundidades e grandes características ou narrativas que as diferenciasse umas das outras.
Outro problema do livro é a sua construção ou montagem. Explico. A história não é linear, trazendo os depoimentos das mulheres em ordem não cronológica. Bem feita, essa técnica pode ser um trunfo para dar dinamicidade à narrativa, mas quando as idas e vindas ficam confusas e mal balizadas o leitor fica sem um ponto de referência. Tive essa sensação durante boa parte da leitura.
Há ainda, ao meu ver, um problema na construção da rotina do personagem. Em muitos momentos a jornada de trabalho de Fio Jasmin não me parecia muito verossímil. Designado para uma viagem a bordo do trem no qual trabalhava, descia no “seu destino” e passava dias pernoitando na cidade e se relacionando com as mulheres do local. Não conheço a fundo a rotina de trabalho de um assistente de maquinista de trem, mas é meio difícil comprar a ideia de que ele tinha assim tanta folga e tanto tempo livre entre uma viagem e outra, podendo se dar ao luxo de passar dias seguidos em relações tórridas de sexo e engano.
Imagino que a autora tenha esquecido esse ponto porque se preocupou demais em rechear a história com depoimentos de mulheres seduzidas e enganadas pelo protagonista. Pode parecer maniqueísta em um primeiro momento, mas acredito que aqui ela talvez tenha acertado. Ao apresentar um homem que não controla o próprio órgão genital, Evaristo retrata um perfil nada raro na história humana, denunciando séculos e séculos de machismo em que o homem é tido como “garanhão” pela sociedade caso se relacione com muitas mulheres, enquanto que a mulher, se fizer o mesmo, fica mal vista no meio em que vive. É a tal da virilidade masculina, sempre “pronta” para se manifestar.
Mesmo que o leitor possa sentir certo maniqueísmo na construção de Fio Jasmin, é importante ressaltar que quem narra o livro é uma mulher. Ou seja, é pelos olhos dela que temos acesso à história e não temos acesso a uma versão contada por Fio Jasmin – basicamente o que acontece no caso Capitu x Bentinho em Dom Casmurro. Portanto, se houver maniqueísmo, ele vem da parte da narradora e não da autora. É como a narradora enxerga o personagem.
Para retomar a questão de verossimilhança, alguns dos encontros me parecem muito estranhos. Vou citar apenas um caso para exemplo, mas há outros. Em determinado momento do livro, em uma das cidades onde pernoita, Fio Jasmin bate à porta de uma mulher que disseram ser bonita. Eles não se conhecem, mas mesmo assim ele decide ir à casa dela. A mulher atende a porta e ambos ficam em silêncio se olhando. Com um gesto, ela o convida para entrar em casa. Ele se senta no sofá e ela pergunta o que ele deseja. Ele continua em silêncio. Depois de um tempo nessa inércia, Jasmin parece tentar algo físico com ela – um beijo, abraço ou algo do tipo. Mas ela esquiva. Ele pede um copo d’água e ela oferece café e espiga de milho. Antes de ir embora ele diz que vai ficar outros dias na cidade e pergunta se pode voltar. Ela diz que é ele quem deve decidir se volta ou não. Então ele vai embora. Preciso mesmo dizer o quanto é mal desenvolvida essa cena?
Além de ter cenas e situações estranhíssimas como essa, Canção para ninar gente grande é uma história que não empolga, não cresce ou muda o tom. Tudo é meio monocórdico. O próprio estilo da escrita é bastante cansativo e me soa meio preguiçoso em muitos momentos – como no início repetitivo de vários capítulos da narrativa. Nem o sabor próprio da escrita de Evaristo, do qual já tanto gostei, vi por aqui. Até a escrita é insossa nesse livro.
Não li outras resenhas, mas imagino que eu seja uma voz dissonante entre os resenhistas desse livro, visto o grande número de fãs que a autora carrega. Mas, de fato, não entendi porque foi desenvolvido dessa maneira, já que o argumento é bom. Isso mostra que boas ideias nem sempre dão bons livros. Mas como sempre digo, esse é apenas meu olhar sobre o livro e não tem intuito de ser a opinião definitiva sobre a obra. Principalmente de uma autora que já fez tantos bons trabalhos.