Caroline Gurgel 28/10/2013O jogo do diabo com cara de anjo...O Jogo do Anjo é o sexto livro que leio escrito por Zafón e, depois de um tempo, você aprende que se quiser A Sombra do Vento novamente terá que relê-lo, pois dificilmente o encontrará perdido em seus outros livros. Parece que essa Sombra o acompanhará pelo resto de sua vida e nada que escreva conseguirá ser livre de comparações, mesmo que seja algo grandioso. Então digo-lhes que li O Jogo do Anjo sem esperar algo parecido com sua obra prima - o que, de fato, não é - mas não pude deixar de me maravilhar e me encantar com suas histórias, como sempre.
Conta a história de David Martín, na Barcelona dos anos 20. Martín é um escritor de estórias policiais de sucesso, mas escreve sob um pseudônimo e sonha, um dia, escrever um livro que levará seu próprio nome. Ele é protegido de dom Pedro Vidal, um dos homens mais ricos de Barcelona, que está sempre disposto a ajudá-lo, mas cujos motivos só conhecemos muitas páginas depois. Cristina, a filha do motorista de Vidal e paixão de Martín, também deve sua vida a esse milionário e, junto a Martín, tentará pagar sua dívida de gratidão àquele que só lhe amparou. Após ser demitido, Martín vai em busca do sonho de seu livro, porém, algum tempo depois, se vê fracassado, humilhado, esquecido e acredita estar doente e à beira da morte. Diante desse cenário, recebe uma proposta tentadora do temível e enigmático Andreas Corelli, que vai mudar o rumo de sua vida.
O Jogo do Anjo nos traz também a livraria dos Sempère, tão conhecida após A Sombra do Vento, e temos o prazer de conhecer um pouco mais de seu passado. É o velho Sempere quem apresenta O Cemitério dos Livros Esquecidos a Martín, que por ele se deslumbra. Confesso que a princípio, na ânsia de compreender quem era quem, foi um pouco difícil fazer a ligação entre datas e personagens que interligam as duas estórias, mas quando nos damos conta é impossível não por um sorriso no rosto. É fantástico como Zafón brinca com seus personagens, não só com os Sempere, mas o próprio Corelli já tinha feito sua aparição diabólica, mesmo que mínima, em As Luzes de Setembro.
Um dos melhores personagens desse livro, se não o melhor, é Isabella, uma aspirante a escritora que decide adentrar na vida de Martín e tenta de todas as formas trazê-lo de volta à vida. Talvez as partes em que aparece sejam as únicas que considero leves e graciosas, pois este é, de todos que já li, o romance mais sombrio e angustiante de Zafón.
Há quem diga que tem aspectos sobrenaturais, como os que envolvem Corelli, mas, vindo de Zafón, vejo tudo como uma grande metáfora, que só muda o ano e o lugar, mas que continuamos vivendo dia após dia. Afinal, tem sempre alguém querendo comprar nossa alma; tem sempre alguém disposto a vendê-la, seja pela ambição ou pela vaidade; tem sempre a culpa de ter feito algum mal, mesmo que inconsciente, e querer repará-lo; tem sempre alguém beirando a morte ou em meio ao fracasso prestes a aceitar qualquer proposta que lhe façam, independente do preço, e, uma vez corrompida a alma, é difícil - ou impossível - reverter os danos causados e as atrocidades feitas e, facilmente, o corrompido leva consigo para o fundo do poço as vidas de quem o cerca, dos que estima. É o jogo do diabo com cara de anjo, tal qual na vida real. Quanto vale a autoria de um livro? As palavras escritas podem ser compradas?
Tão metafórica foi a intenção do escritor que não existe aqui um certo e um errado, não existe um final exato nem a verdade absoluta do que realmente aconteceu. Ele deixa que o leitor junte os pontos da maneira que lhe convier.
Como já disse, não, não dá para comparar essa história com A Sombra do Vento, com seus inúmeros personagens que se entrelaçam em idas e vindas no tempo, mas continuamos a nos deleitar com a maestral habilidade de Zafón em contar histórias. Conta-nos de maneira única, poética e lírica. Conta-nos com tanta minúcia que nos faz sentir a dor e a miséria dos personagens e o cheiro fétido dos lugares por onde passa. Conta-nos com magia e mistério, através da paixão e do ódio, da benevolência de uns e da maldade diabólica de outros. Conta-nos com o prazer de quem tem o dom de enfeitiçar, mesmo com estórias tristes e pesadas.
E como quem vos fala é uma leitora mais que enfeitiçadas por suas palavras, não há como não recomendar O Jogo do Anjo ou qualquer um de seus livros, mesmo que estejam aquém da eterna Sombra do Vento. Mas não se enganem, esse livro não é um continho de fadas, ele é amargo, cheio de miséria e maldição.
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"Entrei na livraria e aspirei aquele perfume de papel e magia que, inexplicavelmente, ninguém ainda tinha tido a ideia de engarrafar."