spoiler visualizarSerenna.MercAs 13/07/2024
Tenho medo de bichano
Voraz e obscuro, "O Cemitério" nos apresenta uma história que se desenvolve lentamente a um desastre que ultrapassa o limite entre a morte e a vida, para isso, tomamos perspectiva de Louis, um médico, e sua família (sua esposa Rachel e seus filhos, Ellie e Cage) em uma moradia nova, consequentemente, em uma vida nova. A trama começa a caminhar furtivamente a partir da descoberta de um cemitério de animais que reside em uma trilha vizinha à sua casa, assim sucedendo-se em diversos conflitos misteriosos e sobrenaturais, todos possuindo uma causa lógica; um perfeito efeito borboleta. Detém de uma escrita criativa impecável para um livro de mais de 400 páginas, escrita essa capaz de absorver qualquer um para a obra, que pena que se pode dizer o contrário da construção de enredo final e caracterização de algumas personagens.
Torna-se um pouco contraditório dizer que a obra possui efeitos de causa e consequência condizentes logicamente um ao outro e, linhas à frente, dizer que a obra não detém de uma construção de enredo impecável, porém me dê a oportunidade da explicação. "O Cemitério" é um livro que amadurece vagarosamente, de modo que nos façamos acompanhar altos e baixos da família Creed. Passamos, detalhadamente, por cada etapa anual, vivenciamos cada memória de Louis desde a sua mudança para a atual casa e, entre um capítulo e outro, vemos nascer e desenvolver uma crise profana, crise essa que nos toma, primeiramente, em poucas linhas e desaparece para, páginas à frente, surpreender-nos novamente e, dessa vez, tomar um parágrafo inteiro e quando piscarmos os olhos, essa crise já estará tomando uma página inteira, um capítulo inteiro, uma parte inteira. O que quero dizer é que o suspense, a crise, acumula-se a cada andar de capítulos, deixando-nos sabidos de quê algo horrível irá acontecer ao final da obra, algo muito mais horrível do que qualquer outra coisa lida no começo ou meio do livro e o problema está aí! Assisti esse terror crescente ter seu ritmo quebrado do meio para o final da segunda parte, surpreendendo-me com um clichê e com acontecimentos justificados por causas sem construção alguma, causas rasas: "Meu Deus, preciso ir ver como meu marido está, mas o meu carro não quer funcionar, sinto como se algo sobrenatural - algo esse que não senti em 300 páginas anteriores - estivesse me impedindo". Em síntese, o problema da construção do enredo é sobre expectativas. É notável que a obra se esforça para criar expectativas diante do final e com muita razão, já que essa expectativa é uma das ferramentas que nos prende à trama, porém é uma expectativa que não é suprida, tive muito mais medo com as crises surgidas no desenvolvimento do quê com a consequência final. O clímax deixou a desejar.
Ademais, as personagens são bem desenvolvidas. No início, senti falta de uma caracterização mais profunda da esposa Rachel - estava torcendo para que ela não se resumisse ao clichê misógino de esposa reclamona - mas posso dizer que esse desejo meu foi atendido - graças a Deus, Rachel foi uma personagem bem construída, com personalidade única e emoções diversas. O que tenho a reclamar condiz com o parágrafo anterior, trata-se de pequenos motivos ao final da segunda parte que me fez escapar da fantasia ficcional que eu estava submersa, o fator de Rachel não conseguir fazer várias coisas por causa de uma força sobrenatural - força a qual, repito, ela nunca tinha notado há 300 páginas atrás, mas notou facilmente nesses instantes finais - soou-me um pouco preguiçoso criativamente. Tirando isso, adorei acompanhar Louis sair de descrente do sobrenatural para adorador daquele cemitério - tirando a parte do bebê com bisturi, amei aquele final. Só tenho algo pessoal a destacar, tenho desprezo por personagens crianças salvadoras e personagens crianças vilãs, então sofri com a Ellie vidente sábia e o Cage endemoniado morto-vivo.
Por fim, acredito bastante que a escrita é a cereja dessa obra. Quando se para para refletir, podemos perceber que os elementos de medo usados no livro, sozinhos, não causam medo algum; existe medo de palhaço, demônios, escuro, serial killers, mas raramente se vê medo de fantasma vestido de calça de corrida, cemitérios indígenas e um gato ressuscitado (retiro os elementos "irmãs corcunda de Rachel" e "bebê Cage assassino", pois esse é uma piada e aquela dá medo independente de escritor), Stephen King é capaz, muito capaz, de criar cenários aterrorizantes em que a escrita se junta com o enredo para criar um dinamismo fluido de atmosferas, acredite se quiser, em certos momentos, o autor realmente me fez relaxar ao ponto de me fazer concluir que aquilo era um livro confortável de dramas cotidianos, para, lá na frente, lembrar-me bruscamente que estou lendo algo chamado "O Cemitério" e essa surpresa que me faz transicionar da leitura confortável para a leitura com o redondinho na mão é, com certeza, algo muito bom para o gênero de terror. Vale-se também fazer uma menção às perfeitas filosofias de vida após a morte distribuídas muito precisamente pela trama. Aqui, o enredo é completamente subordinado da escrita talentosa de King.
Concluo que, apesar das críticas negativas, foi uma leitura proveitosa. Recomendo-a para leitores que saibam se saciar com o começo e meio, e não sejam esfomeados pelo acabar da obra, já que o real banquete está em todo desenvolvimento pré-clímax.