Lucas 09/01/2018
"Há entre o céu e a terra, Machado, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã ironia"
Quincas Borba (1891) foi o segundo livro publicado da chamada trilogia realista de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que reunia também Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e o eterno Dom Casmurro (1899). Usando de muito pessimismo e, essencialmente, ironias, Machado monta uma narrativa marcada por certo niilismo e muito materialismo.
A obra parte da história de Quincas Borba, filósofo amigo de Brás Cubas e que aparece em suas "memórias de defunto". Aqui, o leitor adquire um maior e mais claro esclarecimento a respeito do humanitismo, a fictícia filosofia que Borba apresenta na narrativa anterior. Ela não corresponde a apenas considerar o homem como centro nevrálgico do mundo; é também uma teoria que incentiva a lei do mais forte. É, inclusive, a partir desse esclarecimento (que ocorre nas primeiras páginas da obra) que a trajetória do verdadeiro protagonista vai se desenrolando.
"Pedro Rubião de Alvarenga; mas Rubião é como todos me chamam". É assim que o verdadeiro protagonista se apresenta, em um momento bem importante do livro (tão importante que é a única vez em que o leitor passa os olhos pelo nome completo dele). Por questões próprias da narrativa, Rubião (natural de Barbacena/MG) acaba tomando para si o posto de principal personagem da história. Parte para o Rio de Janeiro, a capital do Império (a história se passa de 1867 a 1871) junto com o cãozinho de Quincas Borba (homônimo do dono), que adquire durante a narrativa um papel importante e tocante. Lá, eles se veem diante de um ambiente repleto de materialismo, classes sociais ascendentes e decadentes, mas indiferentes a importantes questões sociais (como a pobreza e a formação do que viria hoje a ser as favelas nos morros cariocas) e ao aspecto emocional dos indivíduos. Há nesse contexto uma exacerbação da riqueza, que encobre praticamente todo o tipo de afeição emotiva pura e verdadeira.
Machado de Assis usa desse contexto para descrever, sempre sob uma forma indireta e por vezes metafórica, a sociedade da época, e seu forte apego à posses e promiscuidades, algo recorrente nas outras obras realistas do autor. Bailes, saraus, passeios, tudo é cercado de uma pompa inútil, que Machado critica inteligentemente nas suas entrelinhas. Nesse ângulo, as mulheres são, de uma forma geral, obcecadas pelo matrimônio, quase que única razão da existência das mesmas. Aqui, podem-se citar outros personagens importantes, como o casal Cristiano de Almeida Palha e Sofia Palha. Ele, comerciante em ascensão, representa bem uma espécie de "seguro de vida" que as mulheres almejavam para si ao casarem-se. Prova disso é o raciocínio até assustador com que Fernanda, esposa de um político que surge na metade final da história, indica um casamento a uma amiga: "Um marido, ainda mau, é sempre melhor que o melhor dos sonhos".
No lado masculino, o raciocínio é quase o mesmo, mas o "matrimônio" nesse caso é confundido com a política e finanças: a busca por influência e capital é simbolizada pelo já citado Cristiano Palha e pelo Dr. Camacho, proprietário de um jornal de caráter oportunista. As várias mudanças dos gabinetes ministeriais que D. Pedro II fez na época, e que provocavam enorme agitação nesse núcleo da obra servem para explicar a ganância com que cargos e oportunidades diversas eram disputadas. Rubião, então, é inserido nesse meio e, dono de muito capital, mas ingênuo como todo "interiorano", é usado como um trampolim para que outros indivíduos subam em suas costas e alcancem o céu, ressaltando assim muito do conceito de "amizade por interesse", que ainda hoje não é raro no país.
Se não é tão aclamado quanto as outras obras da trilogia realista de Machado, Quincas Borba oferece uma visão contextual bem diferente da doentia e viciada percepção de Bento Santiago e da existência niilista de Brás Cubas. Aqui, tem-se uma narrativa construída em terceira pessoa, por um narrador onisciente e que dirige o seu olhar para diversos ângulos, fornecendo assim uma visão inegavelmente menos distorcida da realidade em questão. O realismo como expressão literária é usado nessa construção para que se demonstre uma sociedade onde o amor e o afeto são legados a um segundo plano: aspectos possessivos adquirem uma importância desmedida.
Esta é, aliás, uma forte característica da prosa machadiana, que rompe-se com o romantismo literário em voga na época (segunda metade do século XIX) e apresenta no Brasil o chamado realismo: uma representação da vida, nua e crua, como ela é, sem traços de "contos de fada". Essa quebra de estilo (que ocorreu com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas) é decisiva para a carreira literária do autor, que, a partir dela, tornou-se inegavelmente o maior escritor da história da literatura nacional (isso pode ser realmente discutido, caro futuro leitor, mas não se pode confundir escritor favorito com o maior escritor. Raciocínio semelhante também pode ser aplicado a livros em si). Seja de uma forma premeditada ou não, o autor apenas trouxe ao Brasil a influência literária da Europa, por meio do realismo exacerbado (naturalismo) do francês Émile Zola ou a descrença prática de Dostoiévski. Não se quer aqui comparar Machado de Assis com esses europeus, mas há certa semelhança entre os escritos realistas do "Bruxo do Cosme Velho", especialmente com as obras do russo.
Essa similaridade é plausível sob o ponto de vista narrativo porque ambos, Machado e Dostoiévski, viveram o auge de sua literatura quando se puseram a relatar a realidade viva da sua respectiva sociedade, mas fazendo isso sem que abandonassem por completo uma veia romântica, que se adequava perfeitamente a esse contexto mais sombrio. O romance, inclusive, era em muitas vezes tratado como um destruidor ou impulsionador da solidez moral de personagens marcantes, como Bentinho Santiago (Dom Casmurro) ou Rodion Raskólnikov (Crime e Castigo). Talvez, por fatos pessoais próprios da vida de Dostoiévski (que ficou 10 anos preso em trabalhos forçados na Sibéria), seus textos a partir do fim de sua reclusão (1859) adquiriram uma verve mais sombria e psicológica, que acaba diferindo-o de praticamente tudo que existe em literatura. Mas, a essência principal do realismo com uma "pitada" leve de romantismo e a grandeza que cada um possui na literatura do seu respectivo país são pontos que sustentam a defesa da comparação.
Distante de qualquer ludicidade, mas carregado de metáforas que representam a sociedade brasileira dos tempos do Império, Quincas Borba é, a sua maneira, uma obra que provoca os leitores para intensos debates, relacionados à inocência, futilidade, adultérios e materialismo nas relações humanas. É recomendável que o livro seja apreciado pela edição da Editora Penguin/Cia das Letras, que, além do bom acabamento, trás um texto de apresentação do professor inglês John Gledson, especialista na obra machadiana, que deve ser lido após a leitura da história, pois é quase que um ensaio a respeito da obra, com dezenas de análises das indiretas que Machado semeia em suas páginas. Aos mais ansiosos, a história do "fundador" do humanitismo pode ser encarada simplesmente como um resumo de todas as capacidades psicológicas, sociológicas e narrativas do maior escritor brasileiro de todos os tempos, cujo legado é eterno e imensurável.