Bea 24/02/2024
Lorde Gwynplaine - A sociedade do escárnio
Inicie e termine no mar. Mergulhe nas profundezas do vazio, do abandono, da providência e das tragédias e terá uma família incomum que, entre tantas misérias, encontraram o paraíso no amor. A natureza acolhe o que a sociedade despreza. Aqui, acompanhamos os infortúnios de Gwynplaine, um menino vítima de uma soma de fatalidades (percebo que o autor tem uma inclinação por destinos fatais). Gwynplaine, o homem, o espectro, o símbolo. Advogado do povo, voz dos que não falam, sobrevivente hercúleo dos desprezos dos soberanos. Porém, uma maldição: um riso eterno entalhado em seu rosto. Crueldade permanente que lhe possibilitou as maiores conquistas e humilhações possíveis. Para sempre condenado entre o sublime e o grotesco. Entre os aplausos e os escárnios. Destinado a ser, como Victor Hugo diz, "a angústia petrificada em hilaridade, carregando o peso de um universo de calamidades, e estava emparedado para sempre dentro da jovialidade, dentro da ironia, dentro da diversão alheia; ele partilhava com todos os oprimidos, dos quais era a encarnação, essa fatalidade abominável de ser uma desolação não levada a sério; zombavam da sua desgraça; ele era sabe-se lá que grande bufão saído de uma espantosa concentração de infortúnios, evadido da sua prisão, endeusado, elevado do fundo da ralé ao pé do trono, misturado às constelações, e, depois, de ter divertido os danados, divertia agora os eleitos! Tudo que nele havia de generosidade, de entusiasmo, de eloquência, de coração, de alma, de furor, de ira, de amor, de inexprimível dor se resumia a isto: um acesso de riso?” (p. 486). Hugo traz o amargo desespero do mundo nas aberturas mutiladas do riso forçado de Gwynplaine. E todos riem dele, que chora, que grita, que desmorona.
Preciso incluir um comentário comparativo aqui, pois era meu objetivo desde o ínicio do livro. Gwynplaine conheceu o amor, o carinho e a ternura quando encontrou a pequena Dea e foi acolhido por Ursus e Homo. Encontrou sucesso através do seu riso permanente. Conquistou o calor de uma família, de um acolhimento, de um porto seguro para os conflitos internos que enfrentava constantemente. Quasímodo, em “?O Corcunda de Notre-Dame?”, por outro lado, jamais conheceu o amor. Foi adestrado, foi desumanizado desde pequeno. Foi acolhido pela sociedade uma única vez, pelo riso, na festa dos bufos. No dia seguinte, os mesmos que o ergueram e o aplaudiram, assistiram satisfeitos ele ser chicoteado por horas. Ainda, amou sem ser amado. Nem por aquele que considerava pai, nem pela menina que foi gentil com ele uma vez. Em casos de personagens desprezados pela sociedade, poderia dizer que Quasímodo foi mais desafortunado que Gwynplaine. Apesar de “?O Corcunda de Notre-Dame”? pouco revelar os sentimentos de Quasímodo, pois foca propriamente em Notre-Dame, Frollo e Esmeralda, podemos dizer que em temática de grotesco x sociedade, Quasímodo conheceu o desmoronamento do desprezo social. Gwynplaine o conheceu da mesma maneira, mas, pelo menos, pode se refugiar no amor de sua família nômade e suas apresentações esplêndidas.
Uma leitura mais fluida de Victor Hugo, porém densa e angustiante. Apaixone-se por Ursus e Homo. Encante-se por Dea. Mas, principalmente, admire a seleção assertiva de palavras, pensamentos, situações e denúncias que Hugo insere nas perturbações de Gwynplaine. Experimente, a cada nova fatalidade, a seguinte veracidade: “?É do inferno dos pobres que é feito o paraíso dos ricos?”. Afunde nessa atemporalidade desesperançada.