Fabio 25/04/2024
"A paixão e o estado alienante da obsessão"
"Sou mestre na arte de falar em silêncio. Toda a minha vida falei calando-me e vivi em mim mesmo tragédias inteiras sem pronunciar uma palavra."
"A Senhoria", pequena novela escrita pelo gênio da literatura mundial, Fiódor Dostoiévski, publicada pela primeira vez em 1847 na revista russa, "Anais Pátrios", foi mal recebida pela crítica de sua época, e atualmente é apontada como uma obra prematura, rasa e obscura. Constitui na primeira tentativa de caracterização do tema, que o autor iria se dedicar praticamente durante toda a sua carreira. O sentido da vida e a existência do ser.
Frequentemente criticada pela brevidade e a inópia no desenvolvimento de alguns aspectos, a novela "A Senhoria", não foi compreendida em todas as suas nuances pelos contemporâneos do autor, pois ele estava bem à frente de seu tempo, e indica, que a dificuldade criada a sua compreensão, faz parte da própria construção narrativa, e complexidade temática, visto que, na tentativa de retratar de forma autentica, o afastamento da corrente realista e dos seus alicerces, se depara com uma nova perspectiva e depreende a impossibilidade de apresentar a universalidade da existência e a essência da vida num só quadro, como diligenciou com afinco, mas, naquela época, não logrou êxito esperado, resultando em imbróglios entre o autor e os críticos literários da época.
Narrado em terceira pessoa, sob a perceptiva singular, somos apresentados a Vasily Ordínov, um intelectual introspectivo, acomodado e sem profissão, que vive parcamente, por meio de subvenção. Vê-se obrigado a procurar com afinco um novo alojamento, que caiba no pecúlio oriundo de uma inesperada herança. No decurso, defronta-se com uma mulher de beleza angelical, no qual foi arrebatado veementemente por uma paixão avassaladora e instantânea. Destarte ao conhecer pessoalmente a atribulada Katierina, o protagonista abstrai-se em um mundo onírico e alienante, e passa viver em um devaneio febril, permeando entre a realidade e alucinação.
Ordínov após uma incessante procura pelas ruas de São Petersburgo, encontra um quarto para alugar, e ao descobrir que o cômodo preterido, pertence a Múrin, o velho aparentado de Katierina, entrega-se ao seu destino, pactua o contrato e resolve mudar-se no mesmo instante. Ao alocar-se no cômodo, naquela mesma tarde, em um breve relance, sob o fulgor do crepúsculo, vislumbra a silhueta de sua beldade, então, em um estado de angustia, cai doente em um torpor mórbido e torturante.
Ambientando na cidade de São Petersburgo, marcada pela pobreza e pelo desespero de seus habitantes, Dostoiévski no conduz pelas sinuosas e gélidas ruas acinzentas de uma cidade em estado de decadência, prostrada diante de suas limitações, onde predomina frieza e austeridade de uma população vilipendiada e oprimida. E esse ambiente predominantemente melancólico, imprime ainda mais anóxia a ambientação.
Dostoievski, nos convida a uma jornada moral, psicológica e filosófica, e ao nos lançar para dentro de seu mundo complexo e fragmentado, ergue a fasquia que nos interliga a sua mente e nos deixa a mercê, das sensações ignóbeis e os delírios tórridos dos personagens, e ao embutir esse fluxo continuo de insensatez no próprio texto, nos lança em um mundo de sonhos, delírios e confusão, onde tudo deve ser questionado e não há mais distinção do que é real ou ilusão.
Combinando dramaticidade exacerbada e intricados embates psicológicos, a novela "A Senhoria", trata conjuntamente ao tema principal, a subjugação do ser humano por outro e a desumanização da pessoa oprimida mediante a seu algoz, e ratifica que toda a obra está voltada a desvendar o tipo de relação social oculta pelo processo de alienação, ressaltando os efeitos dos traumas e o asselvajamento mediante o extremo isolamento mental.
Dostoievski, nos entrega uma obra intensa, pesada, repleta de paradoxos, onde os intentos do autor são inacessíveis como em nenhuma outra obra, e àqueles que não estão acostumados com a escrita e/ou a filosofia Dostoiévskiana atravessam tais passagens a duras penas, não poucos, abandonam, pois sente-se abandonados à própria sorte, em um vórtice de complexidades.
Trata-se de uma obra extremamente intimista tecida por um Dostoiéviski, jovem e pueril, que na tentativa de evadir-se das ideias obsoletas, empreende-se por um caminho extremamente árduo, ao tentar destrinchar a essência do ser e as significações da existência, e transforma-las em um entrecho literário verossímil e inteligível. O imberbe Dostoiéviski, mesmo com um texto prematuro, repleto de imperfeições e digressões, promove a necessidade de reestruturação de uma escola de pensamento, e a inovação dos conceitos literários, ora ultrapassados, buscando obstinadamente por ideias mais vivas e luminosas e, Ordínov é o signo dessas mudanças, ao ser elencado como ascendente direto do "Anti-Héroi" de "Memórias do Subsolo".
Em suma, "A Senhoria" é uma novela sombria e provocativa, que exige paciência, perseverança e entusiasmo, pois nos faz viajar por um mundo onírico e pessimista, onde tudo é pandemônio dentro de uma história atroz, que nos suplica atenção e investigação o tempo inteiro. Não bastasse as complexidades, Dostoiéviski, ainda cria uma atmosfera de suspense e tensão crescentes, que conduz o leitor ao limite da sensatez, mas ao final é que percebemos os efeitos que a obra incuti em nós, e ficamos com aquela desagradável sensação de que, faltou algo, ou algo fora tirado de nos.