spoiler visualizarNatalia 20/04/2020
Moralidade burra
Em agosto de 2019, o vereador Clayton Silva (PSC) da cidade de Limeira, no interior de São Paulo, criticou duramente "A Bolsa Amarela" de Lygia Bojunga em suas redes sociais. Esse é um livro utilizado pela rede municipal de educação da cidade. Clayton entrou com um requerimento para a Secretaria Municipal de Educação no qual questiona se há o conhecimento de "que o conteúdo do livro afronta os princípios morais dos pais dos alunos". Para ele, o governo "investe contra as crianças e contra a família" ao adotar um livro que aborda a "ideologia de gênero".
Foi após tal acontecimento que adicionei esse clássico da literatura infanto-juvenil à minha estante, como "Quero ler". Gostaria de entender o porquê das críticas. O motivo está explícito em um diálogo da protagonista Raquel com seu irmão André. Raquel diz ter inventado um amigo com quem se comunicava por cartas e segue-se a conversa:
"Meu irmão fez cara de gozação:
-- E por que é que você inventou um amigo em vez de uma amiga?
-- Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher.
Ele me olhou bem sério. De repente riu:
-- No duro?
-- É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe para as brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que -- puxa vida! -- vocês é que vão ter tudo. Até pra resolver casamento -- então eu não vejo? -- a gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina".
E, por isso, Raquel tem o desejo de ter nascido garoto. Em sua bolsa amarela, ela esconde junto com ele mais duas outras vontades: a de crescer logo e a de escrever. Esses desejos ficavam escondidos porque, para os adultos de sua casa, as crianças não tinham direito de tê-los. Ela não sentia que podia conversar com sua família sobre seus anseios e, por isso, os guardou na bolsa. Lá dentro, eles cresciam e cresciam. A bolsa ficava cada vez mais pesada e difícil de carregar.
Está aí: essa é a "ideologia de gênero" que o vereador absorveu. Para ele, o livro está ensinando as crianças a transexualidade. Claro, se uma menina expressa o desejo de ser menino, está dito: é uma obra da esquerda para ensinar as crianças a quererem ter a genitália que não nasceu com elas. Só que não. Me parece que o político leu apenas a orelha da obra, sambando sem dó no trabalho de Lygia Bojunga, que escreve para crianças com maestria, com livros premiados e adotados por diversos municípios do país em suas escolas. Afinal, não é possível que alguém que acompanhou a trajetória da Raquel mantenha esse mesmo pensamento.
Após uma visita em uma loja que fazia reparos, a protagonista conheceu uma família diferente da dela, na qual uma criança como ela, Lorelai, podia expressar os seus desejos e opiniões (e as tinha respeitadas). E assim, pensa: "(...) puxa vida, como a mãe da Lorelai curtia ser mulher; e como a Lorelai curtia ser menina. Ela achava que ser menina era tão legal quanto ser garoto. Quem sabe era mesmo? Quem sabe eu podia ser que nem a Lorelai?". A vontade de ser garoto então emagreceu tanto que parecia de papel.
As meninas estão tão acostumadas a serem tolhidas de liberdade durante a infância que é natural invejar os meninos. Quem não iria querer não ser relembrada diariamente a sentar que nem uma mocinha ou que seus gostos são "coisa de menino"? Brincar na rua, ser incentivado a ambicionar (ser jogador de futebol, astronauta, cientista ou super herói) e não a cuidar da casa com pequenas vassouras, pias com pratinhos para lavar, fogão com panelinhas para cozinhar. Me diz, quem? Bastou ter contato com uma garota que podia, simplesmente, "SER" em seu ambiente familiar que o desejo de ser menino desvaneceu e voou para longe como uma pipa.
Se, diferentemente do Clayton, o leitor ler com sua mente ativa e com o coração aberto, perceberá que "A Bolsa Amarela" traz ensinamentos valiosos (para nós, adultos!). A obra nos relembra que as crianças também têm desejos, vontades e anseios; também podem não estar a fim de fazer alguma coisa, como cantar aquela musiquinha bonitinha ou dançar do jeitinho que dançaram em casa para uma tia que nem conhecem bem. Explicita, de forma impecável, a criatividade que cabe nos pequenos -- e que eles são seres humanos completos.
A minha conclusão é única: eles não entendem nada.