Ivan 07/10/2021
Horrorshow!
Lançado em 1962, o livro Laranja Mecânica surgiu após um diagnóstico médico equivocado e que dava a seu autor, Anthony Burgess, poucos meses de vida. A obra aborda uma sociedade inglesa distópica pelo ponto de vista de uma subcultura jovem de ultraviolência. O caos é a força-motriz da obra. Seus personagens são sujeitos alucinados e cuja linguagem – a nadsat – reflete a confusão de suas engrenagens e personalidades. O título do livro vem de uma expressão cockey (dialeto Londrino) que significa bizarro, estranho. Ao associar a laranja, algo natural e vivo, a uma condição mecânica, temos como resultado algo controlado, que não pensa por si mesmo. O autor escreveu o livro intencionalmente dividido em 21 capítulos, uma referência à maioridade e amadurecimento.
Laranja mecânica retrata a história de um adolescente com inúmeros transtornos mentais. O livro é narrado em primeira pessoa por Alex (cujo nome vem do latim “a-lex” - sem lei), o que nos dá uma visão ainda mais ácida sobre seus pensamentos e suas experiências. Alex, nosso “humilde narrador”, é a soma todas as neuroses e descasos de uma sociedade viciada e que se esconde atrás de um falso moralismo.
O adolescente Alex e sua gangue de amigos (os "druguis" Georgie, Pete e Tosko) estão tão à parte da sociedade britânica que se comunicam por um idioma bem peculiar batizado de nadsat, reflexo da formação de Burgess como linguista, e influenciada pelas gírias russo-inglesas da época. Alex pensa e se comunica neste vocabulário bizarro, o que, apesar de dar qualidade a ambientação, torna a leitura mais lenta e difícil. Além de todas as palavras inventadas, Laranja Mecânica tem uma quantidade quase desesperadora de “tipo assim” e outras gírias com que estamos mais acostumados, dando-nos a sensação real de estarmos ouvindo um adolescente de vocabulário viciado.
Alex e sua gangue de delinquentes londrinos cometem crimes de ultraviolência pelas noites da cidade, dentre eles roubo, agressão, estupro e assassinato. Sempre sob o efeito de drogas sintéticas (ingeridas com leite), o grupo é extremamente agressivo e sem freio. Contrabalanceando todo o caos e horror, Alex apresenta um nível de cultura e refinamento muito elevado para qualquer garoto de quinze anos. Grande fã de música clássica, sobretudo Beethoven, o garoto manipula facilmente os próprios pais, atuando como o filho educado e cuidadoso. Ao mesmo tempo, ele exerce um controle ditatorial sobre os outros jovens de sua gangue, fazendo de sua palavra lei.
Ele talvez conseguisse manipular o leitor também, se todas as cenas de roubos, agressões e estupros não fossem descritas com tanto detalhamento. Alex assume o trabalho de narrador com tanta intimidade que ele compartilha conosco, sem medo, qualquer um de seus pensamentos, não nos poupando detalhes, ainda que uma coisa sempre lhe falte: motivo. Não há motivo, raiva ou negligência que sequer comecem a justificar o seu comportamento ultraviolento. É absolutamente gratuito.
É difícil termos uma dimensão do quão distópico e terrível é a Inglaterra ficcional do livro. Estamos tão aterrorizados com nosso anfitrião que não damos a devida atenção ao fato de que mesmo o prédio de alta-classe em que seus pais moram está absolutamente depredado em todas as áreas sociais, ou ao fato de que seus pais pouco se importam se ele está preso, vivo ou morto. Alex é, de fato, um narrador tão impecável que nós não conseguimos prestar atenção em mais nada além dele. É o próprio Alex que nos escancara a terrível e inevitável natureza de seu mundo com uma frieza que apenas ele seria capaz: discutindo conosco com consciência e tranquilidade sua realização de que nem mesmo ele será capaz de lutar contra o tempo e a natureza doentia das pessoas.
Mas Alex é submetido a um condicionamento que o torna fisicamente incapaz de sequer estar próximo de qualquer insinuação de agressividade. Em consequência, ouvir sua música favorita causa nele o mesmo efeito. Ao tirar o livre arbítrio de Alex, foi tirado dele o direito de escolher o mal, porém ele também perdeu a capacidade de escolher o bem. Somos todos fruto de nossos erros e acertos, aprendemos com nossas falhas e através delas descobrimos o correto. Mas Alex não pode fazer isso. Suas atitudes eram extremamente repulsivas e dignas de punição, mas essa deveria mesmo ser sua anulação completa? Não existe oportunidade para o aprendizado ou amadurecimento, apenas o condicionamento?
Longe de ser um livro superficial, aborda temas fortes e reflexivos, como violência, livre arbítrio e poder de escolhas. O autor critica a superlotação e violência encontradas dentro do presídio, que por si só já comprometeriam a correção e reabilitação dos presos. Aborda ainda a relação de Alex com seus pais e sua criação permissiva.
O vocabulário nadsat deixa a leitura travada no início, por ter que olhar o glossário frequentemente, porém, depois de alguns capítulos fluiu melhor. Até porque, Alex repete várias vezes algumas expressões e a gente passa a compreendê-las no decorrer da história. “Laranja Mecânica” deveria estar na lista de muita gente.