Miguel Freire 08/04/2024
Ultraviolência
Laranja Mecânica é uma verdadeira sinfonia. Espancamentos, drogas, mortes, linguagem, bem e mal, liberdade, Beethoven e “ultraviolência” se unem para formar uma harmonia sonorosa, que abala o leitor com seus acordes devastadores.
Publicado em 1962, Laranja Mecânica é um dos integrantes da “sagrada” tetralogia das distopias, junto com 1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451. Porém, por mais que o livro apresente características futuristas, ele não se mostra tão distante da atualidade quanto os seus pares. O futuro retratado em Laranja Mecânica é mais próximo do que se imagina; até porque, venhamos e convenhamos, grupos adolescentes tocando o terror à noite, gírias, violência e degradação nas ruas não é lá muita novidade. Hoje, Laranja Mecânica talvez seja a distopia mais próxima do nosso presente.
Ainda sim, como uma boa obra de ficção-científica, há a sensação de afastamento e de estranheza inerentes ao gênero. Porém o principal causador dessas sensações não é a tecnologia, mas sim a linguagem. Anthony Burgess desenvolveu um dialeto falado pelas gangues de adolescentes misturando palavras inglesas e russas: o nadsat. Essa sensação de estar em um mundo novo foi vivida por Burgess ao voltar para a Inglaterra depois de prestar serviço militar em Bangladesh, além de que os anos 60 foram uma época de profunda mudança nos costumes e normas sociais.
Mas, como toda grande obra, o livro vai além de um simples retrato social: livre-arbítrio, origem do mal e amadurecimento são temas que também têm destaque. Alex é o líder de um grupo de adolescentes vândalos que, assim como vários outros, espalham o medo pelas ruas de uma metrópole decadente com todo tipo de perversidade: roubos, espancamentos, estupros, assassinatos e por aí vai.
Um dia, ele foi preso e submetido a um tratamento de recuperação adotado pelo governo, que tinha como base a lavagem cerebral, fazendo com que o criminoso passasse a ser incapaz de cometer o mal. Já perceberam aonde isso vai chegar? Por mais que o sujeito nunca mais fizesse mal a ninguém, ele seria para sempre incapaz de fazer qualquer escolha moral. Privado de seu livre-arbítrio, ele não se torna nada mais do que um robô, uma laranja mecânica. É justo desumanizar uma pessoa para que ela não cometa mais crimes?
A origem do mal é um ponto interessante aqui: o mal não é causado por má influência da sociedade ou dos pais ou do que quer que seja… o mal vem de dentro do ser humano, é inerente à ele. Alex é mal por vontade própria, ele mesmo diz isso: “E mais: maldade vem de dentro, do eu, de mim ou de você totalmente odinokis[...]”. O homem acima de tudo é mau por natureza e isso reforça ainda mais o dilema do limite do livre-arbítrio.
E no meio disso tudo, Beethoven e sua gloriosa nona sinfonia servem como a trilha sonora desse romance brutal, formando um delicioso contraste entre a violência e a glória, entre bem e mal, um contraste que tanto é humano quanto não é mecânico.