Tarsila 22/04/2012Bem-construídoQuando sua mimada prima Edith casa-se com o Capitão Lennox e viaja para Corfu, a jovem Margaret Hale deixa Londres, onde residiu por alguns anos, e volta para a casa dos seus pais, na bela e tranquila Helstone. Se as queixas da sua viúva Tia Shaw, mãe de Edith, são de ter se casado sem amor, embora que com um homem muito bem-estabelecido, as de sua mãe, Mrs. Hale, são por sua vida humilde, tendo se casado com um simples pároco.
Apesar de tantas enfadonhas reclamações da mãe, a estadia segue em paz até que Mr. Hale anuncia sua decisão de deixar a igreja, tornando-se um dissidente e abandonando seu meio de sustento. Seu padrinho de casamento e acadêmico de Oxford, Mr. Bell, recomenda-lhe a cidade de Milton para trabalhar como professor particular, pois ali encontraria industriais buscando instrução, após terem alcançado ascensão social.
A família então se dirige para lá, sentindo de imediato o choque pela grande distinção entre o sul, da amada, decorosa, inocente e rural Helstone, e o norte, da cheia, agitada, violenta, suja e fria Milton, de pessoas rudes e ocupadas que valorizam a independência.
Milton sofre os impactos da Revolução Industrial, que marcou a Inglaterra no século XIX, e temos o quadro da época, com os donos de fábrica contra os operários, que vivem e trabalham em condições precárias; o início dos sindicatos, com a união dos trabalhadores em busca de direitos; a organização das greves; as ideias socialistas e as progressistas; o louvor e a crítica ao capitalismo. A riqueza histórica do livro é notável.
Mr. Thornton é um dono de uma fábrica têxtil eminente que com muitos esforços e conselhos de sua mãe alcançou a posição de destaque que possui, e se torna o aluno preferido de Mr. Hale, com quem trava discussões, e do qual se torna um amigo.
Miss Hale tem contato com famílias de operários que vivem em estado indigente, em especial com um operário de opiniões firmes que apoiava a greve, Mr. Higgins, e sua filha, Bessy, doente por causa da poluição no trabalho nas fábricas.
Os personagens participam de discussões muito interessantes a respeito das qualidades do norte e do sul, e das relações tão conflituosas entre industriais e operários, que se tratam como inimigos, mesmo dependendo um do outro. Diversas questões são levantadas, e todos os pontos de vista são enfaticamente defendidos; os longos e inteligentes diálogos são um dos pontos altos do livro, promovendo debates válidos.
“- O senhor não sabe nada do sul. Se há menos aventura e menos progresso – suponho que não devo dizer menos excitação – provocados pelo espírito de jogatina do comércio, que parece forçar a criação dessas maravilhosas invenções, também há menos sofrimento. Vejo homens aqui, andando de um lado para outro nas ruas, que parecem derrotados por alguma perturbadora tristeza ou preocupação, e que não são apenas sofredores, mas inimigos. Lá no sul temos lá os nossos pobres, mas não há nos seus rostos essa terrível expressão de doloroso senso de injustiça que eu vejo aqui.” P. 65
Mr. Thornton admira o caráter de Miss Hale, bela, sensata e orgulhosa, que com todos os seus preconceitos o despreza. Um romance à la Orgulho e Preconceito surge, com diferentes classes sociais, mal-entendidos, julgamentos precipitados, discussões, transformações, desencontros e reencontros.
As personalidades são muito bem-construídas, há os personagens fortes, decididos, orgulhosos, capazes de grandes paixões, os superficiais, vaidosos, passíveis e frívolos, os que lutam e os que se deixam prostrar pela vida. O pensar e o sentir dos personagens são otimamente descritos através de longas reflexões, e assim pode-se acompanhar o seu processo de transformação.
“Lá embaixo, Margaret mantinha-se calma e controlada, pronta para orientar ou aconselhar os homens que haviam se sido chamados para ajudar o cozinheiro e Charlotte. Os dois últimos, chorando sem descanso, imaginavam como a jovem patroa conseguira perseverar até o último dia, e resolveram entre eles que ela já não devia ligar muito para Helstone, tendo passado tanto tempo em Londres. Ali estava ela, muito pálida e calma, com seus olhos grandes e sérios observando tudo – qualquer circunstância, por menor que fosse. O que eles não poderiam entender é como seu coração sofria, o tempo todo, com um peso que não havia suspiro que remediasse ou aliviasse – e como o empenho constante das suas capacidades perceptivas fora o único meio de evitar que gritasse de dor.” P. 44
Os núcleos são bem-trabalhados, a relação entre os donos de fábricas, entre os grevistas, e dentro dos lares é mostrada de forma que se tem uma visão muito clara do que se desenrola interna e externamente. O cenário dos bairros dos operários é bem real, e chocante por vezes; a autora morou em Manchester, cidade que foi modelo para a criação de Milton, e trabalhou com ações filantrópicas, portanto conhecia a fundo a situação da população carente e da desigualdade social.
“(...) há muitos que trabalhavam cardando o algodão e acabaram destruídos, tossindo e cuspindo sangue, justamente porque foram envenenados pela penugem. (...) Algumas pessoas têm uma enorme roda em um canto da sala de cardagem, que joga uma corrente de ar na sala e leva para longe a penugem. Mas essa roda custa muito dinheiro – quinhentas ou seiscentas libras, talvez -, e não dá lucro nenhum. Por isso, só poucos patrões puseram essa roda. E ouvi falar de homens que não querem trabalhar nos lugares onde existe uma roda, pois dizem que sentem fome, depois de terem se acostumado a engolir a penugem por tanto tempo e agora ficam sem, e que têm que receber um salário maior, se trabalharem nesses lugares.” P. 81-82
O livro não possui descrições cansativas, é, na verdade, muito envolvente, e cada capítulo inicia com trechos escritos por algum autor, que só enriquecem o livro.
A BBC produziu uma minissérie baseada em Norte e Sul, a que assisti e considerei fiel o bastante. As cartas de Margaret a Edith são usadas para externar os pensamentos da heroína, e dessa forma tem-se contato com o que se passa dentro dela. As cenas no sul são intensamente luminosas, verdes e repletas de flores; as dos norte são cinzentas e poluídas, com a penugem flutuando como neve, e o único local com vegetação parece ser o cemitério.
Creio que quem gosta da obra de Jane Austen apreciará Norte e Sul. Há pontos em comum no estilo delas, e em suas obras existe a presença de discussões longas, das diferentes classes sociais, do preconceito, dos contrastes entre aparência e a essência de tudo, do amadurecimento dos personagens.