João Pedro 05/01/2022Clássico definitivo de ficção científicaQuando se cruza com um clássico, se reconhece. “A mão esquerda da escuridão” é um clássico definitivo da literatura de ficção científica, e uma leitura da obra é suficiente para entender os porquês. Para além de uma trama intergaláctica de forte dimensão política, Le Guin sustenta a proeza de, a partir de uma sociedade alienígena inventada, questionar os limites de gênero cultivados em nossa própria sociedade.
É por meio de Genly Ai, um ser humano do que equivaleria, em um distante futuro, ao planeta Terra, e de sua missão diplomática ao planeta Gethen, que somos apresentados a seres próximos de nós, mas que guardam a peculiar diferença de serem desprovidos de gênero: seu sexo só se define em determinado período, restando a completa indefinição de gênero na maior parte de suas vidas. O estranhamento de ser não apenas um ser alienígena, mas também o único no planeta a sustentar seu sexo de modo perene, se prova um dos grandes desafios de Genly Ai em sua missão, que se somam aos seus próprios conflitos internos em tentar se entender e se comunicar diante de uma sociedade em que o masculino e o feminino não definem vidas.
Lenta em determinadas passagens, vale a pena investir na leitura, que se prova forte em indagar o que nos define além do que se tem por gênero, além de ser uma engenhosa obra dotada de aspectos políticos e filosóficos.
“Vi então novamente, e de uma vez por todas, o que sempre tivera medo de ver e vinha fingindo não ver nele: que ele era uma mulher, assim como era um homem. Qualquer necessidade de explicar as origens desse medo desapareceu junto com o próprio medo; o que me restou, finalmente, foi a aceitação dele tal como era. Até então eu o rejeitara, recusara-lhe sua própria realidade. (...) ele tinha sido o único a me aceitar inteiramente como ser humano: que havia gostado de mim como pessoa, e me oferecera completa lealdade. E que, portanto, exigira de mim o mesmo grau de reconhecimento, de aceitação. Eu não estivera disposto a lhe oferecer isto. Tinha sentido medo de fazê-lo. Não queria oferecer minha confiança, minha amizade a um homem que era mulher, uma mulher que era homem.” (p. 246)