Vania.Cristina 05/06/2024
Ficção científica e aventura que discute questões de gênero
Que boa surpresa! Eu não esperava uma história tão influenciada por Tolkien e Frank Herbert. Aqui também é criado todo um novo mundo, com povos, línguas e culturas próprias.
Antes de mais nada, aviso que vale muito a pena ler o texto de apresentação dessa edição, escrito pela própria autora. Nele, Ursula Le Guinn faz uma análise dos seus erros e acertos com a criação da obra, e acaba discorrendo muito sobre o fazer artístico e o papel do escritor. Achei um texto certeiro e importante para quem lê ou escreve ficção.
Na história propriamente dita, o protagonista e narrador é Genly Ai, um viajante espacial terráqueo, em missão no planeta Gethen. Ele está exercendo o trabalho de um "primeiro móvel", ou seja, foi enviado sozinho para estabelecer o primeiro diálogo e, a partir daí, convidar as nações de Gethen a participarem de uma federação de planetas chamada Ekumen, da qual a Terra faz parte. O propósito é diplomático e comercial, pretende-se um intercâmbio de produtos, tecnologias e conhecimentos.
O planeta Gethen é conhecido pelo Ekumen como Inverno, porque vive em plena era glacial. E esse é o cenário inóspito que acaba por influenciar a vida e o destino dos personagens.
Parte do livro é narrada por Genly Ai, parte é formada por "documentos" e "lendas locais", que representam diferentes vozes em diferentes tempos. A narrativa intercala capítulos que trazem essas vozes ancestrais e distantes com outros que apresentam a história contada por Genly, mais linear. Achei uma construção interessante, porque não causou, para mim pelo menos, uma quebra significativa de ritmo. Muito pelo contrário, esses capítulos especiais trazem ganchos para a história que se desenvolve a seguir, ajudando assim a construir bases sólidas para o mundo criado. Fui me envolvendo de forma crescente e intensa com a narrativa e os personagens.
O segundo protagonista é Estraven, homem forte do governo da nação Karhide, onde começa a história. Vemos alguns acontecimentos pela sua perspectiva, principalmente através de um diario que ele escreve.
Uma das grandes questões trazidas pela obra é que o planeta Inverno é formado também por humanos, mas que apresentam uma sexualidade totalmente diferente da encontrada nos humanos dos outros planetas. Os habitantes de Gethen são andróginos, assexuados na maior parte do tempo, e vivem um período da sua vida fértil que lembra o cio instintivo dos nossos animais, e que na cultura getheniana é chamado de kemmer.
Durante o kemmer, os indivíduos passam por grandes mudanças hormonais. Seus órgãos sexuais, que antes ficavam ocultos, latentes, tornam-se ativos. Alguns gethenianos vão desenvolver aparência e papéis femininos e outros masculinos, e assim seguem durante todo o período de reprodução. E não acontece sempre do mesmo jeito, determinado indivíduo pode ser pai de uma criança e mãe de outra.
Essa grande sacada da autora permite que ela traga para discussão questões de gênero e de divisão de papéis na sociedade. O livro foi publicado em 1969, influenciado pelo pensamento feminista de Simone de Beauvoir e de outras intelectuais.
Mas a autora recebeu uma importante crítica que eu preciso citar aqui (é uma resposta a essa crítica que ela traz no texto de apresentação): As mulheres de certa forma foram apagadas da história. Úrsula descreve seus personagens gethenianos como homens delicados, que às vezes exercem papéis que na nossa sociedade seriam femininos. Mas não descreve um mundo com mulheres. Talvez o problema tivesse sido solucionado com o uso de pronomes neutros, mas isso já é difícil hoje, imaginem na época em que o livro foi publicado.
De qualquer forma, a polêmica não diminui a originalidade de sua abordagem. Além do mais, a obra tem personagens consistentes e fascinantes, além de muitas outras camadas.
Trata de política, poder, ancestralidade, religião, fé, diversidade, solidão, humanidade... Amor... Sim, há momentos que deixam o coração quentinho, mas não esperem nada hot, é de outro tipo de amor que a autora está falando.
No livro há também momentos intensos de crueldade, opressão e tortura. Outros de encontros e conexões íntimas. Jornadas por paisagens hostis sob um clima assustador. Cenários extremos, belos e perigosos. Manifestações artísticas, religiosas e culturais. Naves espaciais, telepatia e saltos temporais.
Ou seja, há reflexões sociológicas relevantes ainda hoje, mas também vários ingredientes de uma boa ficção científica, de uma incrível história de aventura num mundo fantástico. Como não poderia deixar de ser, tornou-se um favorito para mim.