Cho 22/09/2020
"O futuro, em ficção científica, é uma metáfora do agora"
A mão esquerda da escuridão, escrito por Ursula K. Le Guin, é um clássico da ficção científica, publicado em 1969, ganhou o prêmio Hugo e Nebula pelo melhor romance daquele ano. Esse é um dos livros de Le Guin ambientado no Ciclo de Hainish (universo de outros livros da autora), por isso acredito que um glossário seria muito cômodo, mesmo que tudo seja explicado durante a narrativa - mas nunca de imediato, o que pode fazer um leitor ansioso deisistir da leitura.
A história, narrada sob a forma de um relatório e com alternância de narradores, se situa no planeta Gethen/Inverno. O protagonista é Genly Ai, embaixador do Ekumen (liga de 83 planetas, cujo propósito é desenvolver comunicação, harmonia e comércio entre os mundos). A sua missão é convencer os gethenianos de que ele é um alienígena e que eles devem se juntar ao Ekumen.
Primeiro, ele tenta convencer o rei de Kahide (um dos dois Estados de Gethen) de sua missão, com o apoio do primeiro ministro, Estraven. Por causa de questões políticas e disputas territoriais com o Estado vizinho, Orgoreyn (de governo totalitário), o plano deles não dá certo, mas principalmente porque as diferenças psicológicas, sociais, formas de comunicação etc., parecem ser acentuadas pela concepção de gênero. Gethenianos são andróginos, exceto durante o kemmer, estado periódico e curto, quando eles desenvolvem o sistema reprodutor gino ou androssexual, sem predisposição para nenhum. Desse modo, todo getheniano é capaz de gerar e cuidar de uma criança no curso de suas vidas.
Assim, o livro consegue explorar como gênero/sexo biológico podem afetar o nosso modo de pensar. Aqui vale um alerta: a terminologia adotada para discutir sexualidade nesse livro é um pouco datada, por exemplo, não há distinção entre gênero x sexo. Por essa razão, não ficou claro para mim o que a autora quis dizer com "ambissexualidade" - obviamente não estava falando de atração como o termo sugere, mas de características sexuais, de modo que não entendi se fora do kemmer eles permanecem na condição de hermafroditas ou se com ausência total de quaisquer características sexuais.
Outro assunto discutido no livro é a amizade/amor, desenvolvida entre Estraven e Genly. A jornada deles através do gelo, sem dúvida, é uma experiência semiótica que jamais li (nesse ponto, um apêndice com um mapa do planeta seria muito interessante).
Por fim, levando em consideração o ano em que foi publicado (1969) e os assuntos abordados, a obra é muito transgressora, porém com ressalvas: poderia ter trazido um ponto de vista feminino sobre androginia? poderia. Poderia ter optado por pronomes neutros ao se referir aos habitantes de Gethen? poderia. Poderia ter trazido outras perspectivas que não a heteronormatividade sugerida no kemmer? poderia. Poderia ter ousado mais. Mas só o fato de ter trazido a discussão à tona foi suficiente para que ela perdurasse até hoje. Pois, segundo Ítalo Calvino, um clássico é um livro que não terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.