Felipe - @livrografando 10/07/2020
Um clássico com seus problemas
O Poderoso Chefão é daqueles tipos de histórias que você não guarda na memória por ser um livro que te ensina, mas mais por mérito da pesquisa do autor. Apresentando personagens bem construídos, uma história consistente, com muitas reviravoltas, esse clássico de Mario Puzo proporciona ao leitor uma narrativa excelente, apesar de ser um tanto irregular.
O livro narra a história de Don Vito Corleone, um magnata que encabeça uma das famílias mais poderosas de Nova York, a família Corleone. A narrativa se inicia no ano de 1945, apresentando três casos impossíveis que apenas Don Corleone poderia resolver, de uma certa forma, apresentando um prólogo da história e o fio condutor dela. Enquanto isso, na casa dos Corleone está acontecendo o casamento de sua filha Connie e seu genro, Carlo Rizzi. Durante a cerimônia, as três pessoas aparecem e levam suas histórias a Don Corleone. São eles: Amerigo Bonasera, que está com a filha toda desfigurada devido a uma tentativa de estupro e pede a Don Corleone que mande fazer o mesmo; o padeiro Nazorine, que possui um genro que enfrenta o risco de ser deportado para a Itália e Johnny Fontane, um ator e cantor de sucesso, mas que agora lida com a baixa auto-estima, não apenas por conta de sua voz não ser mais a mesma, mas também pela razão de não estar mostrando ser um homem sedutor, pegador, protótipo da figura masculina nos anos 1940 e que até hoje ainda perdura.
Don Corleone, vendo que sua idade está avançada, começa a observar seus três filhos para vislumbrar quem irá sucedê-lo no comando dos negócios: Michael, Santino (Sonny) e Frederico. Enquanto isso, ocorre a morte de seu consigliere (uma espécie de conselheiro, de orientador), Genco Abbandando, fazendo com que ele nomeie Tom Hagen, mas enfrenta o obstáculo de o mesmo não ser siciliano de origem, requisito fundamental para ocupar cargo de tamanha magnitude. A história começa a se movimentar quando Don Corleone sofre uma tentativa de assassinato por Sollozzo, obrigando o grande Don Corleone a se afastar da direção dos negócios e deixar que seu filho mais velho, Santino, assuma de forma interina o comando da Família, tomando decisões que podem impactar seriamente no destino dos negócios dos Corleone.
A edição do livro, apesar de ser simples e não ter nenhum cuidado, nenhum requinte, oferece uma boa experiência ao leitor. O calibre da edição da Record se assemelha ao calibre das edições de bolso da mesma editora, o que pode causar um certo desconforto a um leitor que exige uma diagramação mais caprichada, mais sofisticada. Acredito que a experiência do livro se deva mais ao texto afiado e dinâmico de Puzo do que de fato pela edição que a obra oferece.
O texto é maravilhoso, bem escrito, bem cadenciado, bem planejado, mostrando um exaustivo trabalho de pesquisa do autor e do cuidado dele em concatenar todos os elementos da história. Confesso que, em alguns momentos, algumas descrições acabam por fazer com que Puzo perca um pouco a mão, mas isso não interfere de forma crucial na trajetória harmônica da narrativa. Algumas partes que poderiam ser chatas, enfadonhas, devido a dinamicidade e ao requinte do autor, soam até como partes importantes, a exemplo das quase 15 páginas apresentando as Famílias de Nova York, as histórias e características de cada uma, mostrando o estilo narrativo do autor de se preocupar com a construção da personalidade de cada um dos personagens da história, mesmo que eles não sejam tão importantes assim para o desenrolar do enredo. Apesar da excelência na escrita, Puzo, por vezes, até tenta empurrar goela abaixo algumas situações que poderiam facilmente ser limadas da história, mas a escrita dele é tão envolvente que você acaba por passar pano e acaba por ler tal passagem, coisa que não é para qualquer escritor.
A estrutura narrativa da trama é repleta de acontecimentos, reviravoltas, e acima de tudo, a construção de personagens, conforme já foi falado a exaustão (isso se aplica até o começo da reta final, quando o livro começa a andar em círculos). A primeira grande reviravolta da história é o momento em que Don Corleone é baleado, interferindo diretamente na construção dos personagens Michael e Frederico, algo que será tratado mais adiante. É esse acontecimento que dará todo o tom da história e o mote de O Poderoso Chefão, evidenciando os pontos fortes e fracos da Família Corleone, pondo em xeque sua magnitude, acabando por ocorrer a Guerra das Cinco Famílias, de 1946. O livro é repleto de reviravoltas, que você fica sem fôlego, mas que não vale a pena ser citado aqui para que não estrague a experiência de leitores vindouros.
Quanto a temática, por ser um livro escrito nos anos 1960, a questão do machismo é muito presente na fala e no pensamento dos personagens, a exemplo do próprio Vito Corleone, que prefere ver a filha, Connie, sofrer violência doméstica por parte do marido, Carlo, a intervir em tal situação, por considerar que, depois do casamento, a mulher pertence ao marido, como se ela fosse uma propriedade, além de alguns diálogos e atitudes misóginos que também podem soar incômodos aos dias de hoje. No entanto, o livro também traz uma discussão sobre como a Máfia está intimamente ligada aos grandes poderosos, se constituindo num intrincado de corrupções e esquemas, evidenciando em alguns momentos o texto atemporal de Puzo.
E, por último, os personagens e sua concepção. Digo que, em termos de personagens e de marcas características, O Poderoso Chefão é único, algo que dificilmente será repetido. Eu poderia citar todos eles, mas na minha opinião tem dois casos que evidenciam a genialidade de Mario Puzo. Podemos citar aqui o próprio Don Corleone, visto como um homem fiel à sua palavra, que cumpre o que promete, mas que espera a hora certa para cobrar. Nas negociações, sua marca característica é a não-ameaça, algo que ele ensina a Hagen e que será de grande importância nos impasses que o recém empossado consigliere terá que resolver ao longo da história. E um outro que pode ser citado é Michael Corleone, que até antes de seu pai ser praticamente morto a tiros, era visto como um homem sem nenhuma coragem, sem nenhuma iniciativa, mas que era o único que se aproximava da personalidade do pai, sendo o mais cotado para substituí-lo nos negócios. Além de Sonny, que o tempo todo é concebido como um homem impulsivo, agindo de forma irracional, de modo a pôr em risco os negócios dos Corleone. Percebemos como cada personagem possui não apenas uma história própria como também, em alguma medida contribui para o desenrolar da trama, com exceção de Johnny Fontane, que, para mim, é o personagem mais insuportável de toda a história.
Todos são concebidos para que a história engrene constantemente, sem cair no marasmo, mas vou confessar aqui que tiveram alguns pontos sem nó, principalmente na reta final do livro. Algumas cenas de violência não causam no leitor aquele impacto, descrita de forma seca e objetiva, pelo menos em mim não causou, bem como a impressão de colocar tramas paralelas que claramente respingavam no mote principal de forma indireta, dando a impressão que Mario Puzo já não tinha mais o que escrever. A tentativa de Puzo em incrementar personagens e situações de modo que a história tentasse render acaba por proporcionar momentos enfadonhos ao enredo. Embora tenha um encaminhamento para um clímax de tirar o fôlego, alguns acontecimentos são claramente um engodo para a trama, o que é uma grande pena.
Apesar da reta final arrastada, eu digo que vale a pena a leitura desse clássico por conta da construção das histórias e dos personagens (embora não haja grandes surpresas no livro, pois cada um age de acordo com a sua personalidade, ou seja, são lineares e bastante previsíveis, não havendo nenhuma camada), além da escrita envolvente e dinâmica (até pelo menos a reta final da trama e que se recupera nas páginas finais do livro). Mesmo com uma história previsível, o mérito de O Poderoso Chefão sem dúvida está em discutir de forma profunda e magistral a Máfia, baseada numa pesquisa sólida e consistente. Em termos de escrita, um livro impecável, mas ficou a dever na condução da trama.