André Sekkel 17/07/2009
A Sonata a Kreutzer
O talento de Tolstói é indiscutível, porém seu apego à moral cristã ortodoxa pode ser questionada. O escritor russo procura construir sempre personagens contraditórias, como a famosa Anna Kariênina, mas acaba sempre por ceder à moral de sua religião ortodoxa. Neste livro, A Sonata a Kreutzer, não é diferente. O assunto também não é dos mais originais: o casamento e os sentimentos de amor, ódio e ciúme vivenciados pelos conjujes.
Dando voz a Pózdnichev, Tolstói acaba se confessando perante ao público. Talvez, no século XIX, dizer as coisas como esse personagem pode ser algo novo, até revolucionário, por descortinar uma situação por todos escondida - a submissão da mulher num mundo dominado pelos homens. A questão é pertinente até hoje: os salários inferiores no mercado de trabalho, as menores oportunidades, a repressão social ainda existente etc. E é justamente isso que aparece no início do livro, o descortinamento dessa situação desprivilegiada da mulher. Pózdnichev traduz o pensamento feminino com relação aos homens da seguinte forma: "'Ah, vocês querem que nós sejamos apenas objeto de sensualidade, está bem, nós, justamente na qualidade de objeto de sensualidade, havemos de escravizar vocês' - dizem as mulheres" (p.34). E essa escravidão se resume ao mundo no qual vivemos: produz-se, mas só para as mulheres. Roupas, sapatos, jóias, música, literatura, teatro, tudo isso é feito pelos homens para as mulheres. Jogadas ao mais baixo nível social, o de simples objeto sexual, as mulheres usam o que elas têm, ou seja, o corpo, a sexualidade e a sensualidade, para escravizar os homens dessa meneira.
Portanto, se o mundo tem essas futilidades, a culpa é da mulher. "Veja o que freia em toda parte o movimento da humanidade para frente. As mulheres" (p.48). Eis o pensamento de Tolstói, traduzido por Pózdnichev. Mas por que isso? Ora, quem é culpado da queda do Paraíso? É a mulher, Eva que comeu o fruto proibido. Hoje isso pode parecer um absurdo, mas era pensamento corrente, como podemos constatar a partir dos escritos de um dos maiores escritos russos, numa sociedade como a da Rússia no século XIX. Por outro lado, Tolstói coloca em cena também uma hipocrisia: os homens, desde cedo, eram incentivados a tratar e ver a mulher simplesmente como um objeto sexual. A educação dos homens da alta sociedade russa acontecia nos bordéis, com as prostitutas. Pózdnichev até se pergunta: "Por que se proíbe o jogo de azar e não se proíbem as mulheres em trajes de prostituta, que despertam a sensualidade? Elas são mil vezes mais perigosas!" (p.36). Ainda assim, o perigo está nas mulheres.
Depois dessa reflexão sobre o espço dos dois sexos na sociedade e da explicitação da mulher como o grande mal, Pózdnichev, que está sentado num vagão de trem acompanhado de um desconhecido, seu interlocutor, começa a contar a sua história. O início é justamente os ensinamentos nos bordéis, que fazem os homens a verem as mulheres sempre desse mesmo jeito, mesmo quando disfarçadas de esposas. Para ele não existe o amor. Aliás, existe somente o amor carnal, mas este não é monogâmico. Um homem não é capaz de olhar para uma bela mulher sem a desejá-la, e isso já é um adultério segundo os versos de Matheus: "Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração (Matheus 5, 28)" (epígrafe do livro). Não é por acaso que esta é a epígrafe de A Sonata a Kreutzer. Em resumo: É impossível viver num casamento honesto, pelo menos para aqueles que não seguem as regras de deus. Para os que seguem e vêm no casamento um mistério da religião do qual precisam fazer parte, não há problemas de traíção, adultério etc. Mas no século XIX a religião não tem mais o mesmo peso que tinha no século XVI, a crítica iluminista já havia sido feita, o Estado já se secularizara e os modos de prevenção contra a gravidez já existiam. Uma mulher, esse ser inferior, libidinoso, sensual, não precisava mais ficar encarcerada em seu papel da mulher cristã, que cuida dos filhos. Não, no século XIX ter filhos já era encarado como um fardo, um sofrimento que podia ser evitado. Disso surge o ciúme do marido. E Pózdnichev não foi diferente. Teve cinco filhos com sua mulher, com quem não tinha assuntos para conversar, mas depois ela ficou fraca e foi aconselhada pelos médicos a usar um método de prevenção. A partir disso é que o ciúme do marido se apodera por completo dele. A mulher, ser insaciável, pode traí-lo com qualquer um que frequente sua casa. Esse sentimento o tortura. Como acabar com isso? A resolução é o desfecho do livro.
História de uma tragédia familiar, em parte ultrapassada, mas em parte ainda presente nos nossos dias. Talvez o melhor exemplo que podemos tirar de Tolstói, nesse livro, seja a coragem de desmascarar a situação da sociedade com relação às relações pessoais entre homens e mulheres, maridos e esposas, namorados e namoradas.