3.0.3 18/01/2024
A vida, a vida recomeçando sempre
“No escuro o velho sentia a manhã que vinha, e remando ouvia o som trêmulo dos peixes-voadores a sair da água e o silvo que as asas tesas faziam quando eles cortavam as trevas.”
Ernest Hemingway (1899-1961), renomado escritor que recebeu o Pulitzer em 1953 e o Nobel em 1954, é o autor da obra-prima O velho e o mar (1952). O livro narra a extraordinária jornada de Santiago, um velho pescador, durante a sua expedição mais notável no oceano.
Diante de circunstâncias desafiadoras, Santiago, um pescador habilidoso, se vê às voltas com uma prolongada onda de infortúnios – por mais de oitenta dias, a sorte o escapou, deixando-o à míngua sem qualquer peixe. No entanto, com o auxílio do seu aprendiz, o jovem Manolin, Santiago prepara os seus escassos equipamentos para aquela que será a jornada mais significativa da sua vida.
O velho e o mar embarca o leitor na viagem solitária de Santiago, narrando sua heróica busca para capturar o maior peixe que já encontrou e reconquistar o respeito de seus colegas pescadores. Capturando a essência das lutas, das amizades, dos triunfos e dos reveses da vida – tanto em águas abertas quanto nos campos mais amplos da existência –, a obra se estende para além da superfície e investiga necessidades humanas fundamentais, apresentando uma narrativa carregada de emoções que se aprofundam na introspecção da personagem.
Apesar de enfrentar imensos desafios, vivendo em profunda solidão, Santiago mantém-se inabalável e busca abraçar a felicidade que habita o coração dos virtuosos. Encantador, O velho e o mar é uma viagem através das reflexões de um indivíduo como outro qualquer, mas incrivelmente resiliente. É o simples com potência. Em poucas páginas, notamos como a precisão linguística de Hemingway brilha ao retratar a bravura, a paciência e a superação de Santiago.
O livro transcende a sua premissa inicial de uma pescaria e mergulha na complexa luta interna de um indivíduo solitário e despretensioso. Em termos de narrativa, o autor evoca habilmente múltiplas emoções dentro de cada cena. Assim, transportando o leitor para um reino mítico, onde uma batalha extraordinária se desenrola, mostrando sutilmente a força indomável da determinação e bravura humanas, a obra abre vários caminhos interpretativos.
Santiago dedica-se ao ofício da pesca diariamente, levantando-se cedo e aventurando-se no mar em busca de sustento. Esta perspectiva ilustra como a pescaria é parte integrante do destino do protagonista. É o mar quem lhe proporciona o alimento, e são os peixes que se sacrificam para garantir a sua sobrevivência. Sendo assim, é sempre com grande admiração e reverência que Santiago fala da natureza, do oceano e dos animais. Ele nutre profundo respeito pela fonte que sustenta a sua existência.
O velho e o mar realça a coragem necessária para sobreviver e navegar pela vida até o último instante. Embora a sua viagem seja um embate com o incógnito, onde a imensidão marítima o lembre constantemente a sua insignificância e a sua vulnerabilidade, é justamente no mar que Santiago descobre a sua própria força ao confrontar os demônios que o assombram. A solidão da jornada representa um submergir nas profundezas do próprio inconsciente, transformando o mar em uma metáfora para a autorreflexão, pois o tempo que passa nele também representa uma viagem para dentro de si.
Aquele que deseja obter algo do mar deve abordá-lo com reverência e respeito, como se abordaria uma mãe. Santiago lembra do mar como uma mulher cheia de feminilidade e traça um paralelo entre a influência da lua no mar e o seu impacto nas mulheres. Para ele, o mar é mãe nutridora, fonte de sustento e de vida. Essa sua reverência, que reflete o respeito que ele tem pela essência feminina de sua própria mãe, é um traço alegórico comovente e destaca a sua subordinação a algo que o transcende. Assim como sua mãe o deu à luz e lhe deu de comer, a imensidão marítima tem o poder de gerar e sustentar todas as formas de vida.
À medida que Santiago vivencia os efeitos do envelhecimento, Manolin aprende com ele e gradualmente vai tomando o seu lugar para dar continuidade ao trabalho iniciado. Esse é um paralelo que a obra desenha e que também pode ser evidenciado nos sonhos de Santiago. O velho sonha constantemente com leões, que são ligados a figuras de pais e mestres e são reconhecidos por serem animais sábios, justos e corajosos. Nesse sentido, Santiago desempenha a função de orientador de Manolin, ensinando-lhe sobre a vida e suas circunstâncias.
Reconhecendo a sua limitação e compreendendo que necessitava da sabedoria do velho para enfrentar a vastidão marítima, ele se posiciona como um discípulo, pois, embora tivesse a vitalidade da juventude, a sua falta de sabedoria o tornava vulnerável perante às provações da vida. Manolin considerava Santiago uma pessoa extraordinária, compreendendo bem que o processo de envelhecimento, embora trouxesse a fragilidade física, também trazia no seu bojo uma antologia de experiências. Nesse sentido, Manolin sempre reverenciou as marcas que Santiago levava consigo, pois o seu mentor personifica a ideia de que precisamos cultivar a coragem de perseverar.
Não é todo dia que se encontra um livro tão emocionante. O velho e o mar é uma obra de arte elaborada com uma trama simples, mas grave, que requer tempo para ser totalmente apreciada. Nela, exploramos as limitações e as vulnerabilidades humanas, a conquista do conhecimento adquirido ao longo do tempo, os valores da caridade, do respeito e da humildade com os nossos antecessores. De certo, pertence à categoria das pinturas excepcionais que nos cativam profundamente, criando uma delicada ligação entre o texto e as nossas emoções.
Por fim, compreendemos que a vida segue o ciclo de semeadura e colheita, e O velho e o mar nos ensina que essa construção é diária, onde iniciamos primeiro como novatos e terminamos como especialistas. Para atingir esse nível de domínio, porém, é fundamental cultivar a importância do aprendizado empático e humilde.