Bellelivros 31/03/2022
A linguagem introspectiva e enigmática do romance nos possibilita diferentes interpretações. Ela é recheada de fluxos de pensamentos e flashbacks. Não é uma leitura fluida como 'A Hora da Estrela', o que pode não ser uma leitura tão prazerosa e de fácil compreensão para todos nos dias atuais, mas interessantíssima para o contexto histórico da época.
Em 'Perto do Coração Selvagem', primeira obra de Clarice, mergulhamos no selvagem coração de Joana. Uma personagem que desfaz os esteriótipos femininos da época. Joana é uma mulher de índole duvidosa - assume sua afeição pela maldade -, não era bonita, não tinha apreço pelo casamento e era livre, vivia sem se importar com os valores morais.
Joana possuia um "Q" de psicopatia - era fria e sentia repulsa ao contato humano - mas por outro lado, a maldade de Joana também pode ser questionada. Afinal, quais atitudes definem tal atributo?
Joana não era uma mulher movida pela violência, mas sim, pela rebeldia em não compreender o que é o ser humano. Se analisarmos o cenário histórico; o patriarcado vivido na época, os impactos do fim da segunda guerra mundial, o seu sentimento de repulsa, seus conflitos e a sua depressão não são incompreensíveis.
"Depois que se é feliz o que acontece?" questionava Joana, desde criança.
O ápice da felicidade de uma mulher era o seu casamento, assim a sociedade definia.
Joana cresceu sem receber afeto, foi abandonada e rodeada por ensinamentos machistas presentes em falas do pai, da tia, do marido etc.
VÍBORA, assim era chamada pela tia. VÍBORA, assim foi chamada por Otávio ao descobrir que Joana sabia de sua traição. VÍBORA, o animal que induziu Eva, a primeira mulher, a comer do fruto proibido, VÍBORA, assim era Eva, a mulher, ao entregar o fruto proibido ao Adão, o homem, o santo.
VÍBORA, assim é chamada a mulher que questiona, que enfrenta, que vive sem a dependência do homem e da religião.
"Vinde a mim, Deus (...) chamo por vós das profundezas chamo por vós... (...)" clamava Joana por se sentir sozinha, por não ser compreendida, por não se enquadrar nos padrões como Lídia se enquadrava e era aceita.
Mas, por fim, Joana chega a conclusão de que não quer nenhum Deus, a ela basta a si própria. "Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição".
Joana termina o livro divorciando-se de seu marido, relacionando-se rapidamente com outro homem e seguindo a sua vida em uma viagem ao mar pelo autoconhecimento.
E aqui deixo a célebre frase que diz muito sobre Joana "Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome."
'Perto do Coração Selvagem ' é a quebra do estigma social que permeia o universo feminino.
Uma obra complexa, impossível de ser totalmente detalhada em uma resenha. Merece muito ser lida.