Vítor Melo Medeiros 25/01/2022
Andamos sobre trilhos invisíveis
Perto do coração selvagem é um romance de formação modernista, seguindo as tendências
estilísticas que vinham sendo estabelecidas por romancistas como Marcel Proust, Virginia Woolf e James Joyce, cujo livro Retrato do artista quando jovem é a fonte da epígrafe da obra. O trecho mais famoso da obra é, possivelmente, o seguinte, no capítulo "...O Banho...":
"Se desse um grito – imagino já sem lucidez – minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. – Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda"
É muito interessante pensar nesse "eco igual e indiferente das paredes da terra". Essa figura de linguagem é uma forma muito criativa de se descrever o fato de que a linguagem está contida em si mesma, o que impossibilita uma fuga da linguagem para analisá-la de outra perspectiva que não a própria. Por isso a pergunta: "Onde está a imaginação?"; a imaginação "genuína" não existe, já que estamos constantemente imaginando combinações diferentes de elementos que já existem: signos, elementos constitutivos de um sistema de significação, o Simbólico lacaniano, e por aí vai. Nesse sentido, a linguagem funciona como “trilhos invisíveis” do pensamento, que nos guiam mesmo quando cremos pensar ou dizer algo inédito.
Essa sugestão clariciana é particularmente interessante, já que a própria Clarice é uma das usuárias da língua portuguesa mais imaginativas. O filósofo Richard Rorty sugere que esse é justamente o sentido da "imaginação": combinações criativas desses signo que nos são dados, a linguagem figurada dos romancistas e poetas sendo, pensando com Donald Davidson, uma forma de "linguagem nova" em vez de uma forma de expressão que vai meramente "além do literal". Somando-se a isso o entendimento de Ernesto Laclau de que a linguagem figurada é justamente aquilo que traça as fronteiras de qualquer sistema de significação, chamando atenção para os limites do Simbólico, e tentando "representar o irrepresentável" (o Real), é possível pensar Perto do Coração Selvagem como um dos exercícios mais brilhantes de semiótica do século XX, antecipando tantos movimentos do pós-estruturalismo europeu que viriam décadas depois. Uma das obras primas do modernismo mundial!