Luigi.Schinzari 16/01/2021
Sobre Moby Dick, de Herman Melville:
É ímpar o fato de uma obra literária cair no conhecimento popular da forma como ocorreu com Moby Dick (1851), de Herman Melville (1819-1891), ainda mais sendo a obra que é -- densa, por vezes arrastada (propositalmente, vale adiantar), polvilhada de significados implícitos. A história da vingança do Capitão Ahab contra a cachalote pálida paira sobre o imaginário coletivo há tempos, mesmo àqueles que não leram a obra em si a história dos marinheiros caçando Moby Dick é nítida por conta de suas referências na cultura ao redor, seja em filmes, quadrinhos, desenhos (como esquecer a Dicky Moe de Tom & Jerry?) ou até mesmo na música (relembrando a obra-prima de John Bonham, baterista da banda Led Zeppelin, em seu solo épico homônimo a obra de Melville, invocando a magnitude da baleia em cada uma de suas poderosas batidas), mas sua base, a obra em si, continua sendo um dos maiores expoentes da literatura norte-americana e, não à toa, é motivo de profundos estudos acadêmicos até hoje.
A incessante busca engendrada por Ahab a baleia branca que comeu uma de suas pernas envolve muito mais do que uma trama simples de vingança. Melville utiliza a perseguição como ponto de partida para retratar o ambiente baleeiro, com detalhes mínimos da vida marítima narrada por Ishmael, nossos olhos durante o livro e tripulante novo do navio Pequod junto a seu recém conhecido amigo selvagem Queequeg, exímio arpoador e descendente de uma linhagem real de sua ilha, a fictícia Rokovoko, no sul do Oceano Pacífico. Em seus solilóquios, por vezes, intermináveis sobre a caça baleeira -- a época, eram muitos os recursos utilizados com a carcaça do mamífero aquático, principalmente com seu espermacete, contido na caixa craniana da cachalote, assim como várias outras funções para a sociedade do século XIX --, Ishmael perpassa pelo convívio junto a outros marinheiros, o clima modorrento da rotina no navio e, principalmente, o cego ódio de seu capitão a um ser irracional.
Concentrar Moby Dick, obra vasta como é, em uma categoria apenas seria um trabalho precipitado, mas, caso analisemos unicamente sua trama em um esforço buscando concisão, é inevitável chegarmos a conclusão de que é uma história sobre vingança e conflito contra o inevitável, com todas as outras narrativas passadas pelo Pequod e sua tripulação -- ricamente explorada e diversificada, espelhando os Estados Unidos de Melville e de seu futuro -- partindo de um único elemento, a caçada. A narrativa de Melville nos leva a enxergar, junto a Ishmael, quão incessante pode vir a se tornar o homem quando guiado por um sentimento pouco ou nada nobre como a vingança, e como esta engendra a todos em sua malha de tragédias infindáveis assim como Ahab contamina todos seus marujos, que ali estão para caçar várias cachalotes por conta de seu serviço oneroso, com sua sede de conflito contra a cachalote branca.
Os muitos capítulos que tratam sobre a parte prática da vida e dos conhecimentos da pesca baleeira e seus fins podem ser vistos, em uma leitura mais apressada, como momentos a serem finalizados o quanto antes para logo poder voltar propriamente a trama em si, mas acaba perdendo quem enxerga esses momentos de análise como algo inútil e desinteressante. Tirar as partes de Moby Dick sobre as atividades dos arpoadores, sobre o navio e sua física, os recursos utilizados para a caça, o processo de extração do espermacete de dentro da cachalote e uma análise sobre as diversas espécies de baleias e sua biologia seria extrair parte fulcral para a obra ser o que é. São com essas pausas narrativas que Melville nos posiciona ao lado de Queequeg, de Ishmael, de Ahab e todos os outros habitantes daquele cosmo em forma de navio e deixa o leitor plenamente integrado e entendido sobre o que virá. Para traçar um paralelo, tal recurso é semelhante, guardada às suas devidas proporções, temas etc., aos monólogos filosóficos de Tolstói em Guerra e Paz, tão criticada por aqueles que não buscam compreender a obra como um todo quanto as repreensões dadas a Moby Dick por seus capítulos analíticos.
Melville prepara toda sua conclusão catártica, o inevitável e conhecido encontro do Pequod com Moby Dick, durante toda sua obra, cozinhando a tragédia que paira por toda narrativa sobre as cabeças dos baleeiros; é de se admirar como o autor conseguiu imprimir unicamente por meio de sua escrita hábil o tom shakespeariano (uma de suas principais influências junto a Bíblia Sagrada, como veremos mais adiante) da desgraça iminente. São muitos os alertas dados pelo decorrer da história a tripulação do Pequod para não persistirem em sua cega caçada. Assim como a morte, Moby Dick faz parte da natureza, é próprio associá-la a mão de Deus sobre os homens dentro da obra, e é sua representação máxima, e confrontá-la traz consequências catastróficas e irrevogáveis; há um mau agouro ali, seja pelos acontecimentos, seja pela narrativa magistral do autor, que leva o leitor a viver propriamente em meio àquele ambiente sujo, por vezes violento, mas também lugar de companheirismo e questionamentos, que é o Pequod.
Portanto, é de se estranhar como uma obra dessa envergadura, semelhante ao tamanho da criatura que dá nome ao título do romance, tenha alçado tal reconhecimento fora do panteão da literatura norte-americana (local em que habitaria de qualquer forma por conta de sua qualidade inegável e inigualável, peço perdão pela gagueira), mas fica claro que as fortes imagens evocadas por Melville ao longo de sua obra -- Ahab e sua amputação substituída por uma perna de marfim de baleia, Queequeg e suas cabeças encolhidas compondo uma imagem mítica de um nobre selvagem e, principalmente, o leviatã esbranquiçado, perfurado por toda sua carcaça com diversos arpões, com todos os ferimentos herdados das pelejas travadas e, ainda invicto, vencidas, soprando seu jato único enquanto nada violentamente pelo globo. Violentamente? Bem, talvez seja apenas sua reação a perseguição dos homens, pois, como se vê em Moby Dick, nada pode ser mais assustador do que um homem cego de ódio e maquinando uma vingança. São imagens que marcam aqueles que a conhecem, e a escrita única e detalhista de Herman Melville é, assim como a baleia branca, incansável e suntuosa, espantando e assentando suas presas no imaginário daquele que já pode saborear sua obra-prima.