João Ks 14/06/2023
Moby Dick inspira muitas leituras. Sempre me agrada a ideia de revisitar a obra de Melville para captar as nuances que gravitam em torno narrativa central.
Como acontece em toda grande obra literária, a genialidade de Melville está em alicerçar a narrativa literária em camadas superpostas de sentidos.
Está claro que Moby Dick é um romance de aventura, e como tal povoa o imaginário da cultura popular. Trata-se da famosa história de caça à Baleia Branca. Nisso o romance já cumpre a sua importante missão de ofertar entretenimento e um convite à fantasia. Esse é o aspecto literal da prosa de Melville.
Mas não é só.
Aliás, a potência genuína da obra-prima guarda relação com o poder imagético da narrativa. E nisso a obra de Melville é prodigiosa. O poder de sugestão dos elementos da natureza (a água, o fogo, a terra, o ar), a personificação do Mar, do Céu, e dos animais (o Albatroz, o Cachalote, o Gavião angelical da cena final) suscitam reflexões que transcendem a mera compreensão dos fatos narrados.
Moby Dick se apresenta também como uma alegoria de coisas grandiosas. A magnitude do cachalote, tanto quanto a imensidão do oceano são figuras que ocupam as cenas da epopeia, mas extrapolam o campo da estética para gracejar com a cabeça metafísica do leitor, ou para bulir com a ética do pastor.
Mas é uma alegoria-continente, dado que comporta inúmeras outras representações incrivelmente sugestivas ao longo da narrativa. No capítulo “A brancura da baleia” vemos como a cor branca possui um forte apelo simbólico, e, e última instância, está associada ao sentimento de horror. Do mesmo modo, outras poderosas alegorias são comunicadas por Melville, como o “magnetismo da água” exercido sobre os homens, no capítulo inicial, ou, ainda, o risco que é simplesmente estar vivo, no capítulo “A linha”, representado pela linha da ostaxa.
A baleia ganha contornos metafísicos; a sua incomensurabilidade aos olhos do narrador-protagonista Ishmael a projeta rarefeita sob as águas do oceano, tornando-a mais um membro misterioso do reino dos mares.
Existe claramente uma fronteira delicada entre a forma real da baleia e a ideia de baleia; essa baleia profunda, magnética e existencial que permeia toda a narrativa conduz Ishmael, e, sobretudo, Ahab para uma caça rumo ao insondável (e parece até, rumo ao proibido) que se perde na vastidão do mar; em todo o Moby Dick os pensamentos que consomem o protagonista Ishmael são sutis e imprecisos; tão imprecisos que se amalgamam facilmente, à menor distração, à paisagem do entorno; isso acontece porque não é possível divisar objetivamente a força de empuxo que move os personagens, cujas almas parecem fortemente identificadas com a grandeza da baleia e a profundidade dos oceanos.
A primeira aparição da baleia é fugidia e se dá através de um quadro pintado na Estalagem do Jorro; daí em diante ela sempre se insinuará de modo incompleto sob o manto das águas, como que querendo sinalizar que há limites para a nossa compreensão das maravilhas.
A tematização acerca da alma humana, ainda que de modo figurativo, me parece ser um dos fios condutores da narrativa em Moby Dick; não por acaso os elementos que constituem a dimensão estética da ficção – o oceano, a baleia – casam tão bem com a natureza do tema, dada a sua tendência para o incomensurável, o insondável e o misterioso.
Sim, Melville adora exercitar o ensaio e o texto científico como estilos literários ao longo de todo romance. E longe de me parecer enfadonho, sinto que esses textos dentro do texto maior confluem para o resultado final, assim como os riachos são tributários de um rio principal.
O estilo de Melville exerce um efeito magnético, pois vai da literatura lírica à ao páthos da crueldade animal, da cena bucólica ao thriller da caçada, do sermão moral à demonstração científica. Existe assim um entrecruzamento de textos que compõem o todo literário de Moby Dick, e todos concorrem para o efeito grandioso que imprime, a um só tempo, ar de verdade e de fantasia à obra.
Outra preciosidade do autor é seu humor bem-temperado. A narrativa é divertidíssima em alguns momentos, que, embora rarefeitos, são tão bem construídos e dotados de tais sutilezas de pensamento que são capazes de arrancar risos dos lábios mais rabugentos. Coisas como a noite em que Ishmael e Queequeng dormiram juntos na cama da Estalagem do Jorro, ou o sermão do cozinheiro aos tubarões por ordem de Stubb são impagáveis.
Por falar em Stubb, fica claro o seu protagonismo sobre Starbuck. Óbvio que ambos desempenham papéis distintos e possuem visões muito próprias acerca das coisas da vida, sendo que Starbuck está muito mais para o superego de Ahab do que qualquer outra pessoa, enquanto Stubb me parece tranquilamente fatalista em relação a tudo.
De todo modo, sem Stubb o Pequod não teria graça nenhuma.
Sem Queequeng o Pequod não teria conhecido o valor da valentia e a amizade sincera.
Não fosse Ahab, o Pequod não ostentaria a nobreza e a obstinação humana que vemos desde o Odisseu. Aliás, Ahab é o novo Ulisses; mas é particularmente o Ulisses de Dante (Inf,XXVI), que num sentido alegórico, é movido por sua monomania intelectual-espiritual, rumo ao conhecimento proibido.
E, por fim, sem Ishmael não teríamos a própria história.