Wesley Taciturn 13/01/2011
Introdução a um possivel estudo do espaço fantástico em Macunaíma
O espaço fantástico de Macunaíma é reflexo do espaço real conturbado do século XX. O herói interage diretamente com os fenômenos espaciais que o cercam além de ser brutalmente levado a adaptar-se ao meio em que vive. Primeiramente, ele e seus irmãos, Maanape e Jiguê, vivem numa região amazônica tradicional, onde se identificam com a terra, como notamos quando o herói arma travessuras para sua mãe utilizando-se da interação dinâmica com o espaço e a astúcia de suas mentiras; a partir daí notamos que a narrativa de Mário oscila entre o real e o “surreal”, fazendo bricolagens espaciais como se não houvesse separação entre a vontade do herói e a distância a ser percorrida. A significação poética, a principio, prevalece sobre o símbolo e tudo ganha uma tonalidade mais mística e até mais bela, principalmente pelo fato de os personagens estarem diretamente interligados com o espaço. O “primitivo”, até aqui, mantêm sua essência.
A idéia “mística” dos personagens centrais de Macunaíma é real enquanto eles não se deparam com outra realidade mais objetiva. Tudo já está comprovado segundo os mitos e cultura de Macunaíma e os irmãos, sem necessidade de nenhuma ciência nem prova. Por esse motivo a parte que mais nos convêm analisar é a chegada do herói a cidade de São Paulo, modernizada e em plena efervescência cientifica, que entra em contraste duramente com a cultura primitiva, porém não sobrepassa o “primitivismo”. É como acontece quando nos confrontamos com pessoas, em sua maioria de mais idade, que crêem em certas coisas que é sabido serem meras superstições: por mais que tentemos desmistificar, é impossivel pois a “fé” que a pessoa coloca sobre o assunto está além da possibilidade de compreensão; a cultura soprepassa a razão, nesses casos. E Macunaíma supera a ciência, colocando em tudo que vê explicações oriundas do espaço em que viveu, como se ele próprio fosse o acumulo e fusão de toda a cultura indígena em contraposição à “ignorância” cientifica.
No caminho a São Paulo, Macunaíma com vontade de tomar banho, banha-se numa poça d'água que “era marca do pezão do Sumé” (1984, p. 30) e torna-se branco. Sumé deixou a marca do pé quando “andava pregando o evangelho pra indiada” (1984, p.30), o que nos transparece a mescla fantástico x real e onde, mais uma vez, a descrição vira narração fantástica e a contraposição arcaico/moderno começa a ficar mais evidente. Os três irmãos banham-se e ficam cada um de uma cor, cada um expressando bem a miscigenação brasileira, mas nenhum deles perde sua essência nem deixam de carregar consigo as marcas de sua regionalidade. Macunaíma, Maanape e Jiguê são o Amazonas, como símbolo da identidade nacional, rumando ao desvairismo paulistano. A poça é o espaço onde as fronteiras do primata e do moderno acabam sem afetar, a principio, a intersubjetividade dos peregrinos que transpõem a fronteira.
Após “brincar” com as prostitutas da cidade, como fossem as cunhãs amazonas, o herói desperta e vê que havia “bichos” diferentes no espaço em que se encontrava:
“A inteligência do herói estava muito pertubada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira... Que mundo de bichos!(...) Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só maquina! O heróis aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda. Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d'água, em bulhas de sarapantar.” (ANDRADE, 1984, p. 32)
O personagem fica perturbado, porém não se submete por inteiro ao que lhe explicam, ao contrário, encontra na Máquina uma espécie de “deusa deveras forçuda”, ou seja, transpõe a sua intersubjetividade mística ao objetivismo científico. Mais a frente, Macunaíma não sossega com a idéia de que os “filhos da mandioca” brigam constantemente com a Máquina:
“Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:
Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.” (ANDRADE, 1984, p. 32)
A consciência filosófica do herói ocorre graças ao fenômeno do deslocamento de ambiente que teve e, apesar da falta de conhecimento cientifico, é bastante forte a conclusão a qual ele chega. O conceito de reificação é muitas vezes invisivel ao olhar daqueles que estão totalmente habituados com o empirismo das cidades, a alienação é recorrente em um modo de vida onde a busca pelo capital e as relações cada vez mais interesseiras e menos sentimentais prevalecem, porém quando conceitos do tipo são postos diante de uma figura que não teme a ciência e carrega em si as marcas de uma cultura marcadamente forte, desnecessários são os compêndios e manifestos para que haja uma percepção aguçada. A falta de caráter de Macunaíma faz com que ele não se importe com o que vem dos “outros”, mas aos poucos seus traços vão sendo mudados conforme vai conhecendo as pessoas e a cidade, mudando apenas para alcançar seus ideais, sem nunca deixar de lado suas crenças e suas infalíveis explicações.
Cenas interessantes de Macunaíma em São Paulo exemplificam-nos com clareza o quão persistente é a carga que o herói carrega de sua cultura originária, de seu espaço intersubjetivo, uma delas é a que ele narra a história de como originou-se o Ford, contando que a partir de uma onça, de maneira totalmente natural, o carro surgiu; outra delas é a de quando vendo um palestrante contar a história do cruzeiro do sul no “dia do Cruzeiro”, Macunaíma nega piamente aquela história falaciosa (a ciência cai perante a crendice do personagem):
“(...) Só depois do homem apontar muito e descrever muito é que Macunaíma pôs reparo que o tal de Cruzeiro era mas eram aquelas quatro estrelas que ele sabia muito bem serem o Pai de Mutum morando no campo do céu. Teve raiva da mentira do mulato e berrou: — Não é não! — ... Meus senhores, que o outro discursava aquelas quatro estrelas rutilantes como lágrimas ardentes, no dizer do sublime poeta, são o sacrossanto e tradicional Cruzeiro que...
— Não é não! — Psiu! —... O símbolo mais...
— Não é não! — Apoiados! — Fora! — Psiu!... Psiu!...
—... mais su-sublime e maravilhoso da nossa amarmada pátria é aquele misterioso Cruzeiro lucilante que...
— Não é não! —... ve-vedes com...
— Nan sculhàmba! — ... suas... qua... tro claras lantejoulas de prat...
— Não é não! — Não é não! que outros gritavam também. (…) Macunaíma tremia tão tiririca que nem percebeu. Pulou em riba da estátua e principiou contando a história do Pai do Mutum. (...)
"Pouca saúde e muita saúva, Os males do Brasil são!"
já falei... No outro dia Pauí-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez. Pediu, pro compadre vaga-lume alumiar o caminho na frente com as lanterninhas verdes bem acesas. O vaga-lume Cunavá sobrinho do outro foi na frente alumiando caminho pra Camaiuá e pediu pro mano que fosse na frente alumiando pra ele também. O mano pediu pro pai, o pai pediu pra mãe, a mãe pediu pra toda a geração, o chefe-de-polícia e o inspetor do quarteirão e muitos muitos, uma nuvem de valumes foram alumiando caminho uns prós outros. Fizeram, gostaram de lá e sempre uns atrás dos outros nunca mais voltaram do campo vasto do céu. É aquele caminho de luz que daqui se enxerga atravessando o espaço. Pauí-Pódole então avoou pro céu e ficou lá. Minha gente! aquelas quatro estrelas não é Cruzeiro, que Cruzeiro nada! É o Pai do Mutum! É o Pai do Mutum, minha gente! É o Pai do Mutum, Pauí-Pódole que pára no campo vasto do Céu!... Tem mais não". (ANDRADE, 1984, p.69-71)
Evidenciemos a questão da “Praxis” humana de Macunaíma que, apesar de ser repleta de sua cultura não urbana, é impulsiva, mentirosa e sarcástica tal qual é caracterizada em geral a práxis do homem metropolitano. Apesar de defender suas convicções, o herói não mede escrúpulos para ludibriar os outros e rebaixar, muitas vezes, opiniões adversas a sua além de mentir sem muita necessidade. Desse modo podemos afirmar que a mescla do real e fantástico não se dá apenas em relação ao espaço que é totalmente “ageográfico”, nem apenas à intersubjetividade de Macunaíma filtrar todos os itens e eventos da modernidade, mas sim também ao “real” que é a falta de caráter de Macunaíma e seus impulsos humanos, e o “espiritual” que é toda a transmutação do espaço seja ela ocorrida de fato ou criada pelos mitos contados pelo herói. Por causa dessa confusão que há entre a narração e a descrição, entre o real e místico, entre o cultural e o moderno, não podemos dizer que a rapsódia de Mário é fantástica ou uma fábula. Podemos apenas afirmar que ele conseguiu magistralmente criar algo bastante inovador, como queriam os modernistas de 22, e superou bastante a idéia flaubertiana de mostrar o real excluindo o espiritual das obras.
Apesar de ter sido um livro escrito em férias por Mário de Andrade, sem grandes interesses e, segundo o próprio escritor, ser um grande emaranhado de recortes sem nada de original, a obra é vasta e os personagens e seus espaços podem ser muito mais aprofundados se estudados minuciosamente em suas peculiaridades.
- W.L.S. -