HigorM 07/11/2020
'Estudando com Nabokov': sobre o irônico e o patético lindamente entrelaçados.
A intenção de Gustave Flaubert ao escrever "Madame Bovary" foi um tanto ousada e até mesmo potencialmente fadada ao fracasso, pois ele queria que seu livro tivesse o impacto de um trovão ao narrar o cotidiano, o comum, o dia-a-dia e principalmente o medíocre da vida de um pequeno povoado burguês. O mesmo tinha conhecimento do qual arriscado era o resultado, tanto que escreveu – e não apenas uma vez – para a amante, Louise Colet que "o que me preocupa é a falta de coisas animadas. Há pouca ação [...]. É difícil manter o interesse pelo livro desse modo".
O resultado estrondoso que Flaubert esperava, como se sabe, foi muito maior, dando ao autor, inclusive, um processo judicial por obscenidade. Mais que isso, alçou o autor para um patamar que ele realmente desejava, de ser o primeiro a escrever de modo sinfônico, a falar sobre coisa x. Como se sabe, "Madame Bovary" é o primeiro romance realista, uma escola literária que tem livros conhecidos, como "Retrato de uma senhora", de Henry James, "O crime de Padre Amaro", de Eça de Queiroz, e "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis.
Para compor a tempestade, Flaubert criou uma história mais que comum e batida: um homem apático e satisfeito casado com uma mulher bonita e tediosa. Desiludida com o matrimonio, tão maçante e diferente dos que ela lia nos livros, procura meios de se entreter, sobreviver ao tédio do casamento, do marido e do vilarejo. Começa então as práticas adulteras, paixões inflamadas e procura por reciprocidade, quando muitas vezes não se encontra, alinhadas com a visão dos vizinhos, que duvidam, suspeitam, tentam acompanhar aquelas situações, sem entender de fato as frivolidades de uma mulher casada.
Como confessado pelo próprio Flaubert, o livro não tem ação, e apesar do medo de manter o interesse, o leitor é levado a devorar o livro por conta da mente inquietante de Bovary, que, embora entediada (e levando o leitor a se entediar de igual maneira em diversos momentos), não para de pensar, de procurar um meio de sair de tal marasmo, de ser e fazer coisas interessantes.
É bom frisar que os sentimentos de Bovary por seus amantes, ditos de maneira exagerada, infantilizada e até mesmo cafona, não são um erro de construção do autor, pois ele queria exatamente isso, mostrar a diferença de tratamento de Bovary com seu esposo e com seus amantes, além, claro, de satirizar os romances lidos por ela, cheios de amor, sentimentos e fantasias que fogem, e muito, da realidade.
Fugir da realidade, aliás, embora, este seja um livro, o primeiro, a tratar as coisas de maneira mais realista possível – lembre-se de que Flaubert procurava a perfeição e demorou cinco anos para chegar a tal resultado –, Nabokov em seu "Lições de Literatura" pontua alguns fatos que fogem, e muito, de um romance realista, não para desmerece-lo, mas para apontar que, apesar de furos, a arte permanece e influencia outros autores contemporâneos a Flaubert.
Exemplos de furos são: uma jovem que não cavalga há anos e agora galopa perfeitamente, sem sentir dor depois; o romance nos fundos da casa sem que o marido nunca ouça as pedras atiradas na janela e outros detalhes implausíveis fazem o leitor se questionar e rir desconfiado, mas não apagam o brilho e força do livro.
Suscetível ao fracasso e escrito à obsessão e perfeição, "Madame Bovary" foi um livro marcante para sua época e perdura até os dias de hoje; sem deixar de ser, claro, um poderoso livro sobre o tédio, o marasmo da vida e o dito expectativa versus realidade. Na dúvida, é só ir com cautela para não se decepcionar.
"Lendo Lições de Literatura" é um projeto baseado no livro "Lições de Literatura", de Vladimir Nabokov, em que suas aulas da década de 1940 sobre os Grandes Mestres da Europa foram transcritas e compiladas. Para saber mais sobre a lista e conhecer os demais livros, acesse:
site: leiturasedesafios.blogspot.com