Larissagris 30/12/2023MADAME BOVARY (GUSTAVE FLAUBERT)Pois, calmamente, um dia depois do outro, uma primavera atrás de um inverno, um outono em cima de um verão, a coisa foi-se passando, pouco a pouco, gota a gota; tudo sumiu, tudo fugiu, tudo desceu, como se diz porque no fundo sempre resta alguma coisa, assim... um peso aqui, no peito! Mas, visto que é a sorte que nos espera, a gente não deve desanimar e, porque outros morram, querer morrer também. (Pág. 27)
E, na estrada principal, que estendia sem fim a sua extensa fita de pó, nos caminhos estreitos onde as árvores se entrelaçavam formando caramanchão, com o sol nas costas e o ar da manhã nas narinas, o coração transbordando dos prazeres da noite, o espírito tranquilo, a carne satisfeita, ia ele ruminando a sua felicidade, como quem fica ainda mastigando, depois do jantar, o gosto das trufas que está digerindo. (Pág. 39)
Entretanto, agora, possuía, para toda a vida, aquela mulher bonita, a quem adorava. Para ele o mundo não ia além da sedosa circunferência das suas saias; achava que não a amava o suficiente e sentia saudades dela. (Pág. 39)
Antes de se casar, julgara sentir amor; mas, como a ventura resultante desse amor não aparecia, com certeza se enganara, pensava ela. E procurava saber qual era, afinal, o significado certo, nesta vida, das palavras "felicidade", "paixão" e "embriaguez", que nos livros pareciam tão belas. (Pág. 40)
Acaso não necessita o amor, como certas plantas, de terreno preparado, temperatura especial? (Pág. 63)
- Eu tenho uma religião, a minha religião, e mesmo até mais do que todos eles, com as suas momices e charlatanices. Eu creio em Deus! Creio no Ente Supremo, num Criador, qualquer que seja, pouco importa, que nos pôs neste mundo para desempenharmos os nossos deveres de cidadão e de pais de família; mas do que não preciso é ir a uma igreja beijar salvas de prata, engordar com a minha algibeira uma súcia de farsantes que vivem muito melhor do que nós! (Pág. 80)
Realmente, não há melhor coisa do que passar a noite ao pé da lareira, com um livro, enquanto o vento bate nas vidraças e a luz brilha. [...] É que não se pensa em nada [...] e as horas passam. Sem se sair do lugar, passeia-se por países imaginários, e o pensamento, enlaçando-se com a ficção, demora-se em detalhes, segue o contorno das aventuras. A gente roça pelas personagens e até parece que se palpita sob os seus trajes. (Pág. 85)
[...] as obras que não nos abalam o coração afastam-se, segundo me parece, da verdadeira finalidade da arte. (Pág. 86)
Um homem, ao menos, é livre; pode percorrer as paixões e os países, saltar obstáculos e gozar dos prazeres mais raros. Uma mulher anda continuamente rodeada de empecilhos. Inerte e ao mesmo tempo flexível, tem contra si as fraquezas da carne e as dependências da lei. A sua vontade, como o véu de um chapéu preso pelo cordão, flutua a todos os ventos; e há sempre algum desejo que arrasta e alguma conveniência que detém. (Pág. 90)
Não teriam eles outra coisa a dizer? Os seus olhos, no entanto, transbordavam de palavras mais sérias; e, ao passo que se esforçavam por achar frases banais, sentiam-se ambos invadidos pelo mesmo encantamento; era como que um murmúrio da alma, profundo, contínuo, que dominava o das vozes. Surpreendidos e admirados por aquela nova suavidade, não pensavam em descrever a sensação ou descobrir-lhe a causa. As felicidades futuras, como as praias dos trópicos, projetam, na imensidade que as precede, as suas molezas nativas, brisas perfumadas; e nós nos entorpecemos na sua languidez, sem mesmo nos importarmos com o horizonte que não avistamos ainda. (Pág. 96)
O amor, no seu entender, devia surgir de repente, com ruídos e fulgurações, tempestades dos céus que cai sobre a vida e a revolve, arranca as vontades como folhas e arrebata para o abismo o coração inteiro. (Pág. 101)
A própria doçura do marido lhe causava revolta. A mediocridade doméstica arrojava-a a fantasias custosas, a ternura matrimonial a desejos adúlteros. Teria querido que Charles a espancasse para poder com mais justiça detestá-lo, vingar-se dele. Às vezes, espantava-se das conjeturas cruéis que lhe ocorriam; e era preciso continuar a sorrir, ouvir repetir que ela era feliz, simular que o era, deixá-lo crer! (Pág. 109)
A senhora não sabe então que há almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho e de ação, das paixões mais puras e dos gozos mais intensos, balançando-se assim a toda espécie de fantasias, de loucuras. (Pág. 139)
- Mas por acaso consegue a gente achar a felicidade? [...]
- Há lá um dia em que topamos com ela, [...] um dia, assim de repente, quando já desesperávamos de encontrá-la. Abrem-se então os horizontes, e é como se uma voz bradasse: "Ei-la!" Sente-se a necessidade de fazer-se a essa pessoa confidência da própria vida, de se lhe oferecer tudo, de tudo sacrificar por ela. Não a explicamos, adivinhamo-la. Entrevemo-la em nossos sonhos. [...] Enfim, aí está o tesouro que tanto procurávamos, aí, diante de nós, brilhando, resplendente. Mas duvidamos ainda, não nos atrevemos a acreditar, fazendo-nos ofuscados, como se viéssemos das trevas para a luz. (Pág. 139)
- Ora, lá vêm os deveres! - disse Rodolphe. - Estou farto dessa palavra! Um bando de velhos papalvos, de colete de flanela, e beatas de aquecedor nos pés e rosário nas mãos, cantando eternamente ao nosso ouvido: o dever! o dever! Ora! O dever é sentir o que é grande, querer o que é belo, e não aceitar todas as convenções da sociedade, com as ignomínias que ela nos impõe. (Pág. 140)
- Não! Por que bradar contra as paixões? Não são a única coisa bela que há sobre a terra, a origem do heroísmo, do entusiasmo, da poesia, da música, das artes, de tudo, enfim? (Pág. 140)
- [...] A senhora está na minha alma como uma madona sobre um pedestal: num lugar alto, sólido e imaculado. Mas eu preciso da senhora para viver; preciso dos seus olhos, de sua voz, de seu pensamento. Seja minha amiga, minha irmã, meu anjo! (Pág. 155)
Nunca a Sra. Bovary fora tão bela como então; tinha essa inexprimível beleza que resulta da alegria, do estusiasmo, do êxito, e que nada mais é que a harmonia do temperamento com as circunstâncias. (Pág. 185)
Também Emma quisera, fugindo à vida, voar num abraço. (Pág. 211)
Ah! Se ainda na frescura de sua beleza, antes das poluições do casamento e da desilusão do adultério, tivesse podido entregar sua vida a algum grande e sólido coração, num misto de virtude, ternura, voluptuosidade e dever, nunca teria chegado ao que chegara. Essa ventura, porém, era uma mentira, sem dúvida, imaginada para o desespero de todo desejo. Conhecia já a pequenez das paixões, exageradas pela arte. (Pág. 213)
O aprumo depende do meio em que estamos: não falamos na sobreloja da mesma forma que no quarto andar, e a mulher rica parece ter em torno dela, protegendo-lhe a virtude, todas as suas notas de banco, à maneira de couraça, no forro do espartilho. (Pág. 221)
Não nos devemos acostumar a prazeres impossíveis, tendo à nossa volta mil exigências... (Pág. 222)
- Haverá coisa mais lamentável que arrastar, como eu, uma existência inútil? Se nossas dores pudessem servir a alguém, consolar-nos-íamos com o pensamento do sacrifício! (Pág. 223)
Não era a primeira vez que viam árvores, céu azul e relva, que ouviam a água corrente e a brisa ramalhando a folhagem; mas nunca decerto tinham admirado tudo isso, como se anteriormente a natureza não existisse, ou como se não tivesse começado a ser bela senão depois de eles terem saciado os seus desejos. (Pág. 243)
- Não te mexas! Não fales! Olha para mim! Dos teus olhos sai alguma coisa de muito doce que me faz um bem imenso! (Pág. 252)
Mas o denegrirmos os que amamos sempre nos desliga deles um pouco. Não é bom tocar nos ídolos; o dourado pode sair nas nossas mãos. (Pág. 267)
Apesar disso, não era feliz, nunca o fora. De onde vinha, pois, aquela insuficiência da vida, aquele apodrecimento instantâneo das coisas em que se apoiava? ... Mas se existia, fosse onde fosse, um belo e forte, uma natureza valorosa, cheia ao mesmo tempo de exaltação e de requinte, um coração de poeta com forma de anjo, lira como cordas de bronze, desferindo para o céu epitalâmios elegíacos, por que acaso não o encontraria ela? Que impossibilidade! Nada, afinal, valia a pena procurar-se; tudo mentia! Cada sorriso ocultava um bocejo de enfado, cada alegria uma maldição, todo prazer o seu desgosto, e os melhores de todos os beijos não deixavam nos lábios senão uma irrealizável ânsia de voluptuosidades mais intensas. (Pág. 269)
Mas é que um infinito de paixões pode caber num minuto, como uma multidão num pequeno espaço. (Pág. 269)