Ronnie K. 26/06/2009
Narrativa assombrosamente vigorosa e exemplar
Agora sei que, com toda justiça, por que "O som e a fúria" é considerado, não raro, uma das melhores obras literárias de Todos os Tempos. Pois se trata de um romance poderoso e impressionante em amplos sentidos. Seja nos diversos estilos narrativos adotados pelo autor (quatro vozes diferentes, mais um apêndice); seja pelo Tema sempiterno que aborda (O som e a fúria trata da decadência das relações humanas, do desespero existencial, da angústia, da loucura, da relação de poder entre hierarquias sociais distintas).
A tensão e o conflito estão presentes desde as primeiras páginas do romance, quando se tem a perspectiva aflita e imprecisa da narração do demente Benjy, deficiente mental de mais de 30 anos, que não fala - somente geme, baba e urra. Porém há aqui um frescor narrativo e uma inventividade que só se percebem após vencido o enorme estranhamento inicial da tresloucada sintaxe; a seguir, na Segunda Parte, a angustiosa e não menos perturbada narração do irmão incestuso, Quentin, torna esse momento do romance uma espécie de pesadelo, uma assustadora polifonia de vozes fantasmagóricas que irrompem na tentativa de esclarecer os obscuros fatos até ali expostos.
Porém, o momento de maior êxtase na leitura e de clarividência narrativa estão reservados para as duas partes finais do romance: Quando explode a raiva, o ressentimento e o involuntário humor negro de que se traveste o discurso rancoroso e machista do irmão que ficou pra trás (trecho abaixo), enfurnado na província (ao passo que os outros dois, Caddy e Quentin, de certa forma 'ganharam o mundo'), ao qual sobrou a ingrata tarefa de sustentar (física e moralmente) a decadente família Compson. E, por fim, a narração em terceira pessoa na Parte final, que focaliza a ação nos movimentos da velha negra Dilsey e seu modo simples (porém verdadeiro a seu modo) de enxergar a vida e a decadência moral da família (do mundo?) a que servira (com fidelidade, amor e dedicação) por tantos anos.
TRECHO:
"Eu estava pensando se ela realmente tinha tão pouco respeito por mim que era capaz de não apenas matar aula depois que eu a proibi de fazer isso como também de passar na loja, me desafiando a vê-la passar. Só que ela não podia ver dentro da loja, porque estava batendo sol bem na porta, e era como tentar ver através da luz do farol de um carro, e assim fiquei parado vendo a criatura passar, com a cara toda pintada como se fosse um palhaço e o cabelo todo lambuzado e retorcido e um vestido que se uma mulher saísse na rua só com um vestido daqueles cobrindo as pernas e o traseiro, mesmo lá na Gayoso ou Beale Street quando eu era menino, ela ia parar na cadeia. Garanto que quem veste uma roupa assim quer mais é que cada homem que cruza com ela na rua passe a mão nela. E assim eu estava pensando que espécie de idiota usa gravata vermelha quando de repente me dei conta de que só podia ser um desses homens do circo, com tanta certeza quanto se ela mesma me tivesse contado. Bom, eu agüento muita coisa; se não agüentasse eu estava roubado, de modo que quando eles viraram a esquina eu saí correndo atrás. Eu, sem chapéu, no meio da tarde, tendo que correr pelos becos para defender o bom nome da minha mãe. É como eu digo, não se pode fazer nada com uma mulher assim, se ela nasceu desse jeito. Se está no sangue, não se pode fazer nada. A única coisa que se pode fazer é se livrar dela, deixar que ela vá embora para ir viver com gente da sua laia."
Há ainda um apêndice escrito pelo prório Faulkner quase vinte anos depois da publicação do romance, o qual em tom discretamente satírico e irônico, não só acrescenta novas luzes ao que foi narrado como mostra "o que aconteceu" com os principais personagens ao longo dos anos posteriores ao fim do romance.
Apesar dos exaltados méritos da obra, não é, por contraditório que possa parecer, um livro que eu recomende. Que cada um assuma para si o custo e os riscos de uma leitura tão imprevisível e nada convencional.