Helder 15/02/2021Um arduo caminhoJá posso dizer que li O Som e a Fúria, e não, ele não vai entrar para a lista de livros da minha vida como 10 em cada 10 leitores deste livro. Só vai entrar para a lista dos livros mais difíceis que eu já li, e acho que esta foi a intenção do autor: Fazer um livro difícil.
Sendo assim, mais do que um romance, O Som e a Fúria é um exercício literário. Um quebra-cabeças, onde o autor espalha todas as peças em cima da mesa no primeiro capítulo e segue juntando-as nos próximos. Porém...
William Faulkner resolveu escrever este livro após ter um outro livro publicado e que não fez muito sucesso.
Na época, James Joyce tinha lançado sua grande obra: Ulisses, escrito com um novo tipo de narrativa, que hoje os estudiosos em literatura chamam de Fluxo de Consciência, onde não existe uma narrativa linear nem um narrador onisciente, mas sim diversos pensamentos, ou seja, entramos na cabeça do narrador.
Então acredito que Faulkner pensou: Se Joyce fez algo assim, eu posso fazer algo melhor e mais complexo. E fez!
Tecnicamente O Som e a Fúria é um desafio e um primor!
Realmente existem lances geniais neste livro, mas também muitas coisas que me incomodaram.
Acredito que para começar Faulkner imaginou uma história básica que contaria o declínio de uma família americana no sul dos Estados Unidos. Esta é a família Compson, formada pelo casal Jason e Caroline, seus filhos Candance, Quentin, Jason e Maury, que depois se tornará Benjamim. E além deles temos os empregados negros que trabalham na casa, mesmo muito tempo após a abolição da escravatura. Dentre estes, temos a maravilhosa Dilsey.
Sua história tinha declínio financeiro, romances, ciúmes, racismo, machismo. Mas ainda estava leve, então que tal incluir incesto e até castração.
Nas mãos de uma escritora como Margaret Mitchell, que viveu na mesma época do autor, coisas assim se tornaram uma enorme saga sobre o declínio de uma família de forma linear que foi o livro E O Vento Levou, um dos maiores romances já escritos.
Mas não era assim que Faulkner queria contar sua história, e ele tomou todos os cuidados para que a gente de perdesse no tempo dentro de sua obra, já que seus personagens contam coisas do passado que se misturam com o presente.
Pelo que vamos percebendo, a família tinha terras e muitos empregados, mas com o tempo vai precisando se desfazer destas terras para poder pagar o casamento da filha e a faculdade de um dos filhos.
Mas como eu disse, nós vamos “percebendo” as coisas, pois o livro não nos explica ou explicita nada disso. Ele joga as coisas no ar, e você fica: Será que eu entendi isso mesmo?
Como disse Jean Paul Sartre em um dos anexos do livro na edição da Cia Das Letras “Em O som e a fúria, tudo se passa nos bastidores: nada acontece, tudo aconteceu”
E isso não está somente relacionado ao estilo narrativo, que é o mais famoso diferencial deste livro.
Até no final, quando a narrativa é linear, com um narrador em 3ª pessoa que está ali para nos contar a história, as informações são suprimidas aqui, para serem citadas de leve lá na frente.
Para quem ainda não leu a obra, fica até difícil explicar.
É um livro que requer material de apoio. Explicações, legendas, discussões em grupo.
O livro era tão complicado e aberto que o próprio autor depois escreveu um apêndice explicativo e pediu para incluir em outras edições.
OK! Faulkner era talentoso, mas eu não acho isso muito legal.
Concordo que literatura deve ser feita para que o homem saia de sua zona de conforto, pense, discuta, reflita. Mas acredito que isso deve ser feito com a mensagem do texto, e não com sua técnica narrativa.
O livro é dividido em 4 capítulos e um apêndice, e como um jogo, ele vai tendo seu nível de complexidade diminuído para que o leitor vá se sentindo recompensado.
O primeiro capítulo conta um dia na vida de Benjamim, o filho mais novo da família Compson. O autor nos coloca na cabeça deste personagem, e com o tempo percebemos que Ben é um homem de 33 anos com deficiência mental, portanto as primeiras 70 páginas do livro nos carregam em uma narrativa extremante truncada e complexa, onde Ben nos leva há 3 tempos diferentes, hora narrando suas lembranças de criança, hora de adolescente e hora de adulto. As vezes em uma mesma frase. E você leitor que lute para se situar de que época ele está falando.
No segundo capítulo, o autor volta no tempo e conhecemos Quentin, o filho da família que recebeu investimento do pai para estudar em Harvard. Mas Faulkner ainda não quer facilitar a vida do leitor, pois neste capítulo conhecemos um rapaz em depressão que se sente culpado por diversas coisas, e novamente a narrativa é feita de dentro da cabeça deste personagem, também misturando tempos e o é/foi real ou somente a imaginação de uma pessoa deprimida.
Já no terceiro capítulo voltamos a um dia antes do primeiro, e conhecemos Jason, o rancoroso caçula da família. Neste capítulo a leitura já é mais fácil, pois Jason narra acontecimentos de uma maneira mais clássica, no que é o melhor capítulo e com o melhor personagem do livro, mesmo sendo um dos personagens mais detestáveis da literatura americana.
Jason exala ódio e rancor, por motivos que até poderiam ser aceitáveis, mas ele é tão ruim que nada o redime. Jason foi feito para ser odiado.
Por fim, no último capítulo Faulkner segue narrando o dia seguinte ao primeiro capítulo, porém agora ele resolve usar um narrador onisciente, que passa a contar a história de fora, algo que torna leitura ainda mais amigável, mas que infelizmente leva a um final que não me agradou.
Como o livro era pura técnica, eu esperei ansioso que ele fizesse um final que explicasse tudo o que eu tinha “suposto”, mas ele não quis fazer isso.
A intenção era só mostrar um retrato do dia, mas com um narrador mais comum. Técnica e pronto!
No fim, fiquei com a impressão de que alguém encontrou os rascunhos do quebra cabeça dele numa gaveta e publicou sem ele saber. Sem ele ter acabado.
Algo que ele só fez alguns anos depois, escrevendo o apêndice que realmente explica muitas coisas não ditas na obra.
Muitas pessoas podem dizer que este apêndice não era necessário e eu discordo muito disso.
Para mim trouxe realmente a recompensa que eu busquei como leitor atravessando este árduo caminho, que eu acho que vale a pena ser desbravado.
Obrigado Sr. Faulkner!