Ruan 26/02/2024
Desconfortável, mas vale a pena
Há cerca de três anos, por curiosidade, peguei na biblioteca o livro Crime e Castigo. Na época eu mal conhecia Dostoiévski, embora reconhecesse seu nome. E eu certamente não tinha a paciência e maturidade para entender aquela obra, o que se comprovou, de fato: abandonei-a em cerca de 100 páginas.
Tendo talvez esquecido minha experiência com aquele livro, resolvi, mais uma vez, me voltar para Dostoiévski, mas agora com uma missão mais curta: Memórias do Subsolo.
Um livro curto, mas nem por isso fácil - aqui me refiro não a dificuldade quanto ao vocabulário, mas ao desconforto que o livro traz.
Dividido em duas partes - conectadas e igualmente distintas - Memórias do subsolo retrata a vida de um homem insatisfeito com sua realidade, e que ainda assim não a trocaria por nada mais.
Na primeira parte, o homem do subsolo expõe suas entranhas. O texto soa como a transcrição de um monólogo de alguém que se explica perante outros. O próprio homem levanta questões - que ele imagina que seu público possa ter - para se aprofundar em sua linha de raciocínio.
O homem do subsolo critica seu próprio bem estar e busca um culpado por sua situação. Embora, por sua mesquinhez, não deseje mudar absolutamente nada do que possui. Esse contraste entre ódio e desejo é uma constante durante a obra. O personagem repudia e inveja a vida fora do subsolo na mesma proporção. Tal sentimento se baseia na inércia, na aceitação das coisas como elas são, e mesmo que houvesse possibilidade de mudança, o homem não a acataria.
Na segunda parte, temos um relato de uma parte da vida desse homem. Seu enfoque é na relação do personagem com a sociedade. A escrita recebe uma abordagem diferente, mais narrativa e fluida.
Em 'A propósito da neve molhada', o personagem descreve sua relação conturbada com os demais, a precariedade de sua vida financeira e a dificuldade em lidar com seus próprios sentimentos.
A decadência do personagem é movida por sua convicção de sua superioridade moral e pela inveja, disfarçada de desprezo, pelos outros.
Ao reencontrar colegas de escola, descobre que planejam um jantar de despedida para Zvierkov. Ele considera Zvierkov a representação de tudo que ele não é. Sua obsessão pelo ex-colega de escola, o leva a tomar atitudes que ele próprio desaprova, embora seja incapaz de deixá-las de lado.
Uma grande obra de Dostoiévski, que nos leva à realidade russa em meados do século XIX. Retrata a complexidade da realidade humana, e contradiz o senso de que o ser humano age racionalmente para seu próprio benefício. A genialidade ao tratar tais temas é um ponto ímpar de Dostoiévski, com um texto desesperador e quase cômico às vezes, e uma abordagem diferente da encontrada em qualquer outro livro.