Quincas Borba 22/07/2023
Espetacular e assombroso...
"Dom Casmurro" é um romance escrito em 1899 por Machado de Assis. O narrador, Bento Santiago e o titular dom Casmurro, escreve durante o período republicano sobre suas lembranças de vida, principalmente seu grande amor de infância, a bela Capitu, bem como seu casamento e suas desconfianças.
Essa não é a primeira e nem vai ser a última resenha que eu vou fazer dessa obra-prima. Embora não seja o melhor livro de Machado ao meu ver, nem o suprassumo da literatura brasileira, devo dizer que chega bem perto; de fato, por ser um livro tão poderoso, é decepcionante que o único aspecto que ganhe destaque quando se fala da obra seja sempre o mesmo ponto de "traiu ou não traiu?". Não estou dizendo que não é algo importante, porque certamente é, mas existe um mar de polêmicas e Interpretações nessa obra que merecem mais atenção!
A escrita de Machado é linda; talvez seja o seu livro mais versátil. Ora se adapta ao romantismo quando convém, principalmente no romance de Capitu e Bentinho, ora ao realismo irônico tão querido, ora usa fluxo de consciência para expor a mente deteriorada de um Bento velho... É incrível o quanto sua escrita permanece atual mesmo depois de mais de 120 anos! Os melhores capítulos são aqueles altamente descritivos, tanto no ambiente quanto nos sentimentos dos personagens, como o capítulo do penteado e o da xícara de café, dois capítulos quintessenciais. E não é só a escrita que não envelhece... As críticas continuam mordazes e atuais.
Bento Santiago é um narrador extremamente contraditório e que deve ser desconfiado a todo momento. Ao longo da trama, tenta atar as duas pontas da vida não para restituir na velhice a juventude, como propõe, mas usa das maneiras mais sutis para construir o caráter de seus amigos e conhecidos a fim de manipular a trama. As icônicas descrições de Capitu não são apenas peças irretocáveis de prosa machadiana, também são um meio para que, de forma sorrateira, o obstinado advogado construa seu caso para convencer o leitor do adultério de sua esposa.
Nesse processo entretanto, dom Casmurro acaba revelando mais sobre sua própria índole: ele é alguém extremamente manipulador, grosseiro, que não tem remorso e paranoico. Seja lá qual for a sua conclusão do caso "traiu ou não traiu?", o fato é que Bento usa a história para favorecer o seu ponto de vista e sair como vencedor desse caso, onde ele é juiz e acusador.
Mesmo com a história sendo contada pelas lentes sujas e vis desse narrador, os personagens apresentados causaram-me um impacto muito bom, principalmente Capitu e José Dias. O destaque vai, obviamente, para o próprio narrador. Ouso dizer que Bentinho é o personagem mais bem construído e complexo da literatura brasileira. Suas motivações e ações, principalmente contra o filho que ele acredita não ser dele, Ezequiel, ainda que você veja a história através de suas lentes, são injustificáveis e cruéis, o que faz dele, na minha opinião, num mínimo um anti herói, ou um vilão mesmo. A amargura desse velho que escreve um livro apenas para acusar sua esposa de adultério traz algo que vai além das relações humanas: não seria uma crítica de Machado à elite imperial, que ainda comandava o Brasil depois da queda da monarquia? Ao meu ver, tudo dá a entender que sim: a falsa religiosidade do personagem, que aplica uma visão extremamente capitalista no Cristianismo, bem pode exemplificar a relação da elite com o poder no Brasil, já que como Bento, a elite realmente não acredita em Deus, mas ainda assim o usa para diversos favores e para se justificar (troque Deus por Democracia).
Seria dom Casmurro, esse velho amargurado, também a monarquia, que isolada e derrubada, flertou com o progresso, na forma de Capitu, mas sentiu-se desiludida por sua queda?
Quem sabe, não é?
"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada."