jota 20/11/2021ÓTIMO: romance de Graciliano traz loucura e crime, sofrimento e ódio em Alagoas. É Dostoievski em Maceió? Talvez...Lido entre 06 e 18/11/2021.
Logo nas primeiras páginas de Angústia (1936) o leitor já fica com a sensação de estar diante de uma obra-prima de nossa literatura. Eu mais ainda, já que se trata da releitura de um livro de Graciliano Ramos (1892-1953), como fiz recentemente com Infância (1945), porque pouco me lembrava dessas importantes obras, lidas há algum tempo. Aqui, o funcionário publico alagoano Luís da Silva – trinta e poucos anos, nas horas vagas e noturnas jornalista e escritor –, homem de origens rurais, continuamente presentes em sua memória, é o narrador e personagem central do romance.
Luís é um sujeito angustiado, de mente agitada, desassossegada, que impressiona profundamente o leitor com seus devaneios, delírios, inquietações e aflições, enquanto vai lembrando fatos recentes de sua vida (quer dizer, passados por volta de 1930) e também de sua história mais antiga, suas memórias dos tempos de criança. O problema para o leitor é que isso vem tudo junto e misturado: uma frase pode fazer bruscamente a passagem de um assunto para outro, de um tempo para outro, e imediatamente retornar ao que era tratado antes, no presente. É verdade que ninguém vai se perder na leitura, mas isso a complica um tanto, penso.
Esse processo de construção do livro, que intercala a grande narrativa (a vida e as memórias de Luís) com as micronarrativas (um pedaço de corda, uma cobra que se enrola no pescoço de um roceiro, ratos roendo livros pela casa etc.) – além de outras observações interessantes sobre Angústia – é muito bem explicado no posfácio de Silviano Santiago, presente nesta edição da Record de 2019, que tenho em mãos. Para ele, o livro do escritor alagoano faz parte de certo momento das letras brasileiras em que também se destacaram dois outros livros ligados a temas urbanos, num país que ainda era bastante rural. Eles são: O Amanuense Belmiro (1937), do mineiro Ciro dos Anjos, e Caminhos Cruzados (1935), do gaúcho Érico Veríssimo. Mas ao mesmo tempo a leitura de Angústia também pode nos transportar para a Rússia, para as páginas de Crime e Castigo, de Dostoievski.
E isso pode ser verificado através de diversas teses e estudos que relacionam os dois autores, facilmente encontráveis na internet. Octavio de Faria, que escreveu um pequeno ensaio intitulado Graciliano Ramos e o Sentido do Humano, que serve de posfácio a Infância, mas acreditava ser Angústia o melhor livro dele, já associava os dois autores através de uma citação do russo: “Pode, porém, um homem que se conhece a si mesmo, estimar-se, mesmo um pouco que seja?” Luís da Silva despreza a si próprio, é um homem permanentemente angustiado, tem enorme dificuldade de manter laços de amizade ou amor. Como escreve Santiago, “Laço é morte. Pedaços de corda e corpos de cobras pululam pelo romance. (...) A solidão é o estado natural do narrador/personagem, isto porque a aproximação do outro corrompe”.
Marina, por quem Luís se apaixonara, depois é por ele chamada de puta. Julião Tavares, seu conhecido, com quem Marina se relaciona agora mereceria morrer enforcado... E, de volta a Faria, ele destaca a continuidade entre Infância e Angústia: “Tudo aquilo que vinha sendo represado nele [Luís], a luta entre o menino e o homem, entre o pai e o filho [tudo que lemos em Infância]; depois, entre o regional e o universal, o objetivo e o subjetivo, o particular e o humano, como que explode nessa verdadeira orquestração de loucura e crime, de sofrimento e ódio: Angústia.” O livro de Graciliano Ramos é tudo isso, pois. E um pouco mais, a depender de cada leitor...