lucasfrk 28/07/2024
A volta do parafuso ? comentário
?Acho que todo o mundo de Kafka pode ser encontrado de um modo muito mais complexo nos contos de Henry James. Acho que os dois consideravam o mundo como algo ao mesmo tempo complexo e sem sentido.[?] Ele [Henry James] disse que The Turn of the Screw [A volta do parafuso] era só uma fonte de renda e que ninguém deveria lhe dar importância. Mas não acho que isso seja verdade. Talvez ele tivesse dito: Bom, se eu der explicações, isso empobrecerá a história, porque as explicações alternativas ficarão de fora. Acho que ele fez assim de propósito.?
? Jorge Luis Borges, em entrevista à Paris Review (Ronald Christ, 1967)
A volta do parafuso (1898) é uma ?novela de fantasma? do escritor americano Henry James. É uma obra rarefeita de informações, no intuito de deixar o leitor mais absorto num suspense/terror de caráter psicológico, onde o mal é mais insinuado do que revelado. Narrativa repleta de ambiguidade, o livro permite várias interpretações, ao que elenco duas proposições: I) a governanta está delirando; ou ii) os fantasmas existem (fantasmas esses que seriam extensões sinistras da realidade cotidiana). A obra vai de uma narrativa moldura (história dentro da história), no prólogo, para uma narração em primeira pessoa, no restante do livro (ambas as partes com um narrador-personagem), de modo que o autor, muito habilmente, vai construindo esse texto de caráter dúbio e sugestivo através de uma narradora em primeira pessoa, ou seja, não confiável (aliás, percebo agora que talvez este seja o primeiro livro de um escritor homem com uma narradora mulher que li até agora), de modo que o livro constrói uma relação de persuasão da narradora que se reflete no estilo de James (metalinguagem).
?Se uma criança dá ao fenômeno outra volta do parafuso, o que me diriam de duas crianças?? [?] ?Ninguém além de mim, até agora, a ouviu. É de fato horrível demais.? [?] ?Ultrapassa todos os limites. Nada que eu conheça lhe chega perto?.? (p. 7)
Assim, o escritor traça uma narrativa de incerteza, estranheza e perversidade, por meio dum estilo que preza pela adjetivação e pelos parágrafos longos, poucos diálogos (mais concentrado nos monólogos internos dessa narradora). Percebam como, ao início, quando começa chega pela primeira vez na casa para trabalhar como governanta, a narradora, deslumbrada, cria em sua cabeça um lugar muito mais paradisíaco quando comprado a suas descrições de quartos e corredores obscuros, sombreados por uma iluminação frágil à base de velas, na medida em que se cria o mote principal da trama. O leitor, portanto, acaba se tornando refém das informações fornecidas por essa narradora suspeita (ela luta com a própria consciência, buscando justificação de outros para expiar sua culpa e suas faltas com as crianças). No prólogo, Henry James, através do personagem Douglas, tenta convencer o leitor de que a governanta é uma personagem muito digna de confiança, ao que ele vai testando essa proposição através das inúmeras desconfianças geradas pelas situações e pelo rebuscamento histriônico da narradora.
??A senhora ficará deslumbrada com o pequeno cavalheiro!? ?Pois bem, creio que é para isso mesmo que estou aqui ? para me deslumbrar. Devo confessar, porém?, lembro que um impulso me levou a acrescentar, ?não é nada difícil me deslumbrar. Já me deslumbrei em Londres!?? (p. 18)
?Era um prazer [?] sentir-me tranquila e justificada; sem dúvida, talvez, refletir também que graças à minha discrição, meu sóbrio juízo e meu severo senso geral de decoro, eu estava dando prazer ? se é que ele pensava nisso! ? àquele a cuja pressão eu cedera. O que eu estava fazendo era o que ele enfaticamente esperava de mim e explicitamente me pedira, e o fato de que, no final das contas, eu me revelava capaz de fazê-lo me proporcionava uma alegria ainda maior do que a por mim antecipada. Em suma, eu me via, confesso, como uma jovem extraordinária, e confortava-me a confiança de que esse fato haveria de se manifestar de modo mais público. Pois bem, eu precisava mesmo ser extraordinária para enfrentar as coisas extraordinárias que em pouco tempo começaram a dar os primeiros sinais.? (p. 29)
??Então a senhora me garante ? pois isto é da maior importância ? que ele era definitiva e assumidamente mau?? ?Ah, assumidamente, não. Eu sabia, mas o patrão não.?? (p. 48)
(Curioso como ela (a narradora-personagem) atribui perversidades aos ditos fantasmas, sendo ela mesma a única a, concretamente, causar algum mal às crianças, visto que, por exemplo, Miles morre em seus braços, enquanto ela tenta convencê-lo de que o fantasma de Quint os observa.)
Se cria, então, uma multiplicidade de sentidos, de maneira que James não está preocupado em determinar e/ou impor um significado a sua obra, mas deixar que o público, a sua revelia, explore os meandros dos signos implícitos ? e explícitos no livro. Seria este livro uma novela sobre a luta contra o mal incorpóreo que tenta se apossar da carne humana ou sim uma alegoria ? uma ?história de amor? ? para a repressão sexual advinda duma sociedade moralista da era Vitoriana? Várias são as possibilidades de leitura da obra. O terror é criado, desta forma, na imaginação do leitor, por entre informações fragmentadas (?[?] talvez tivesse me poupado ? bem, logo se verá do quê.?, p. 74).
O livro é tão acachapante que ajudou a fundar uma nova escola crítica, a neocrítica, ou nova crítica, onde se estabeleceu uma cisão entre autor e obra, de modo que esta vale por si própria, sem necessidade de biografismos implícitos nas narrativas. Quero ainda dar destaque para o excelente prefácio de Jorge Luis Borges ? ao qual lerei algumas de suas obras daqui alguns dias, ou semanas ? nesta edição da Ediouro, e ressalta essa dicotomia entre realidade e irrealidade das aparições, a coexistência ou não do bem e do mal no menino Miles e na menina Flora, bem como a credibilidade da narradora. Por fim, o livro é realmente muito bem escrito (não gosto desta expressão, mas paciência), só deixo ressalvas quanto a mudança de narração do prólogo para o enredo principal, posto que os estilos de escrita se assemelham bastante sendo que se tratam de narradores diferentes (o que se esperaria, para o bem da verossimilhança, que sejam diferentes). No mais, elogios ao brilhantismo do título (uma boa sacada) e ao imenso poder de economia narrativa de Henry James.
?Estava bem claro que, por meio dos pequenos artifícios tácitos com que ele, mais ainda do que eu, cuidava de preservar minha dignidade, fora-me necessário apelar a Miles para que não continuasse a exigir de mim o esforço necessário para igualar-me a ele nos termos de sua verdadeira capacidade. [?] Eu só podia seguir em frente tomando a ?natureza? como minha confidente e levando-a em conta, tratando minha monstruosa provação como um esforço numa direção estranha, é claro, e desagradável, mas algo que exigia, afinal, para manter uma fachada serena, apenas outra volta do parafuso da virtude humana comum.? (p. 135)