OgaiT 12/04/2020
O Evangelho segundo Saramago
Saramago, como bom ateísta, foge aos padrões doutrinários do Cristianismo. Por meio de uma escrita ácida e sarcástica, recorre a sua interpretação dos evangelhos bíblicos para contar a história de Cristo. E história digna dos mais eruditos adjetivos. É um dos meus romances favoritos.
Com uma estrutura narrativa que lembra muito o Vidas Secas de Graciliano Ramos, por ser um ciclo, o autor inicia e termina a obra no mesmo ponto de partida. O narrador, a partir de uma minuciosa observação de um determinado quadro, no qual temos a crucificação de Cristo, cita um dado importante quanto a água com vinagre dada a Jesus, o que é uma alusão a certas interpretações equivocadas que nós, os Cristãos, fazemos da Bíblia.
"Lá atrás, no mesmo campo onde os cavalheiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado a mistura que traz, vinagre e água refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tido isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível." (p. 12-13).
Sobre o enredo vamos acompanhar a vida de Jesus Cristo, para além dos episódios bíblicos, o acompanhamos do seu nascimento até a sua crucificação. Um outro ponto muito importante, repetido pela grande maioria das resenhas, é a humanização dada pelo narrador a Jesus Cristo: cheio de medos, inseguranças, pecados, teimosia, questionador, desejos sexuais, um típico ser humano. Por sua vez, José e Maria, seus pais, também passam por essa "humanização" que é suprimida pelos dogmas cristãos, os quais são a todo momento abordados de maneira sarcástica pelo narrador:
"Mas o mal que nasceu com o mundo, e dele, quanto sabe, aprendeu, amados irmãos, o mal é como a famosa e nunca vista ave Fénix que parecendo morrer na fogueira, de um ovo que as suas próprias cinzas criaram volta a renascer. O bem é frágil, delicado, basta que o mal lhe lance ao rosto o bafo quente de um simples pecado para que se lhe creste para sempre a pureza, para que se quebre o caule do lírio e murche a flor da laranjeira. Jesus disse à adúltera. Vai e doravante não tornes a pecar, mas no íntimo ia cheio de dúvidas."(p. 293-294).
Dois alertas aos futuros leitores: prestem atenção no anjo, no pastor e na cuia, pois são peças fundamentais da narrativa. O outro alerta é a de que Saramago não utiliza marcação dos diálogos, é o famigerado monobloco tão detestado pelos corretores de redação.