Thalyta Vidal 25/12/2022
O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago.
A obra O evangelho segundo Jesus Cristo, do português Nobel da literatura José Saramago, foi publicado pela primeira vez em 1991. Contendo 374 páginas na edição brasileira lançada pela editora Companhia das Letras em 2005, constata-se, nesses escritos, a trajetória de Cristo desde os momentos que antecedem o seu nascimento até a sua morte.
Despido dos ideais que regem o cristianismo, Saramago aponta um olhar crítico e cortante para a narrativa do principal personagem dos textos bíblicos por meio do qual evidencia questões que vão de encontro ao próprio caráter moralizante dessas escrituras. Diferentemente do texto sagrado, que pouco remete à infância de Jesus, o autor irá oscilar entre duas linhas narrativas ? cronológica e psicológica. A primeira, é iniciada com a revelação sobre a gravidez de Maria que é procedida pelo olhar atento e detalhado de vivências do seu filho, desde o seu nascimento, passando por sua infância junto aos irmãos, sua juventude aventureira permeada pela descoberta de sua sexualidade, até a retratação do Jesus adulto, um andante que realiza milagres. Já a segunda, aponta para os pesadelos que atordoam o protagonista, bem como as dubiedades que circundam seus pensamentos em diferentes instantes de seu percurso na Terra.
Nesse sentido, destoando de uma mera construção narrativa embasada num caráter mítico, o romancista concebe uma perspectiva humanizada do mito cristão por meio de um realismo crítico sobretudo no que concerne aos personagens que são subalternizados na contemporaneidade e encontram justificativa para tal marginalização no pensamento que se origina da grande religião ocidental: o cristianismo. Logo, convém ressaltar que a leitura de O evangelho segundo Jesus Cristo retira o leitor do lugar comum, levando-o a refletir sobre como as práticas sociais de diferentes sociedades estão ancoradas na presença da religião como norteadora.
Saramago estabelece uma relação dialógica ? usando aqui o termo baktiniano ? com a Bíblia, contudo, recupera o texto original para conduzir o leitor por um percurso não anteriormente construído que se revela, principalmente, na construção de um Jesus humano que, assim como qualquer outro, nascerá da relação sexual entre homem e mulher, José e Maria, bem como aquele que, ao despertar da puberdade, é iniciado sexualmente por uma mulher que tem do sexo o seu sustento, Maria Madalena. Diante disso, constata-se como pulsante na obra o caráter misógino e a crueldade do divino.
Ademais, o romancista - ao se debruçar sobre o universo onírico muito comumente retratado pelo cristianismo como revelador do futuro próximo ? o apresenta como castigo divino. Talvez seja essa a narrativa psicológica que primeiro conduz o espectador à criticidade, visto que José, ao saber que todas as crianças da região serão mortas, opta por manter silêncio e salvar apenas a Jesus, seu filho. O privilégio de um entre muitos é apresentado por meio de uma abordagem trágica, pois, para que fosse salvo, muitas crianças precisaram morrer. Diante disso, tal fato perseguirá José durante suas noites em toda a vida por meio de pesadelos que o impedem de viver em paz. Evidencia-se, portanto, o início da tragicidade que se apresenta conforme o próprio ensinamento bíblico que se constrói a partir da ideia da semeadura, a ironia saramaguiana revisita o texto canônico lhe atribuindo uma nova passagem que facilmente poderia o compor para despertar a reflexão sobre o individualismo cristão que se apresenta sempre como coletivo.
Jesus é, assim, a representação de todos os pecados numa inversão que o leva, mesmo após realização de milagres, à crucificação, ressaltando, dessa forma, um pai divino imparcial, cuja justiça se faz na morte e na condenação. Logo, o mito maior do cristianismo é também a representação daquilo que condena, a vaidade, no romance português. O olhar construído, portanto, apresenta em Jesus um herói que se aproxima, por exemplo, dos mitos gregos, visto que os deuses, dessa mitologia, representavam virtudes e defeitos do homem, estavam, ao mesmo tempo, no plano divino e no terrestre.
Observa-se, ainda, a ironia no que se refere à forma como o feminino é evidenciado. Maria - aquela que carregou em seu ventre o responsável pela salvação do homem na Terra ? é, constantemente, diminuída por ser mulher. São constantes as passagens em que ela é silenciada e menosprezada numa composição realista quando há agradecimentos a Deus por não fazer parte desse grupo: Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher (SARAMAGO, 2005, p.19). A misoginia é constante nas falas dos personagens masculinos que, constantemente, a ressaltam como sexo frágil, embora evidenciem o trabalho exacerbado que realizam: não fez sequer dezesseis anos e, embora mulher casada, não passa duma rapariguinha frágil, por assim dizer dez-réis de gente, que também naquele tempo, sendo outros os dinheiros, não faltavam destas moedas. Apesar de fraca figura, Maria trabalha como as mais mulheres, carando, fiando e tecendo as roupas da casa, cozendo todos os santos dias o pão da família no forno doméstico, descendo à fonte para acarretar a água... (SARAMAGO, 2005, p.21).
Ao percorremos todo o enredo, passagens como as supramencionadas são sucessivas e pertencentes a diálogos que naturalizam o olhar misógino que reforça o patriarcalismo. Nesse sentido, ao duplicar esse estereótipo, Saramago pondera e traz para o seu romance a interligação entre as religiões e as práticas sociais que se reverberam em diferentes períodos históricos.
Convém, então, ressaltar que a leitura de O evangelho segundo Jesus Cristo nos leva a refletir que, apesar do Iluminismo ter promovido o olhar antropocêntrico da sociedade, embora a pesquisa científica contribua para um olhar positivista do homem, o forte e influente poder do cristianismo contribui e continuará a reverberar, mesmo no século XXI, práticas de subalternização que se ancoram em um discurso que difere das práticas, conforme constantemente encontramos no Antigo Testamento. Nesse sentido, a humanização da divindade cristã realizada no romance em questão é capaz de levar o leitor a refletir sobre Deus não como exemplo de bondade e compaixão, mas também como propulsor de uma religião que o proclama por meio de condutas que divergem das bonanças que estão em seu discurso.